Adriano Machado/Crusoé"Política é exercício de poder. Receita é um órgão importante e há a larga tradição brasileira dos interesses políticos tentarem sobrepor-se"

‘Receita tem de ser órgão de estado’

Everardo Maciel, chefe do Fisco durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, diz que pressões são normais, mas defende que é preciso resistir às tentativas de interferência no órgão
11.10.19

Em várias de suas manifestações recentes sobre a Receita Federal, órgão contra o qual declarou guerra desde que descobriu ter sido alvo de uma apuração em suas declarações de renda, o ministro Gilmar Mendes se derrama em menções elogiosas a Everardo Maciel, o tributarista que comandou o órgão durante todo o governo de Fernando Henrique Cardoso. Ao bater bumbo sobre a prisão, na semana retrasada, de um auditor que ele vem apontando como um dos responsáveis por auxiliar a Lava Jato em investigações indevidas contra autoridades, o ministro do Supremo fez mais uma das várias homenagens, desta feita com ares de desagravo à instituição. “A RF (Receita Federal) é uma das entidades mais honradas do país, tendo sido chefiada por grandes nomes como Francisco Dornelles e Everardo Maciel”, escreveu em uma rede social.

Gilmar, assim como outras altas autoridades da República, vê excessos no trabalho da Receita nos últimos anos. Foi a partir dessa visão que, recentemente, houve mudanças importantes na estrutura do órgão e alterações na forma como informações provenientes do Fisco são usadas em investigações criminais – o presidente do STF, Dias Toffoli, proibiu o compartilhamento de dados detalhados, tanto pela Receita quanto pelo antigo Coaf, sem a prévia autorização de um juiz. Pois Everardo Maciel, a referência de Gilmar, não compartilha exatamente dessa visão segundo a qual há exagero na atuação da Receita. Pelo contrário. Para ele, o órgão deve, sim, exercer seu papel de investigação na área tributária. E o Coaf, agora rebatizado de Unidade de Inteligência Financeira, apesar dos ataques, é um instrumento crucial para o combate à lavagem de dinheiro.

“É natural que pessoas se sintam incomodadas”, diz Maciel, de 72 anos, nesta entrevista a Crusoé. Apontado como um dos padrinhos do novo secretário do órgão, José Barroso Tostes Neto, o ex-chefe da Receita nos anos FHC diz enxergar as tentativas de interferência com normalidade e admite ter sofrido pressões quando ocupou a cadeira. Mas defende que é preciso resistir. “Receita tem de ser órgão de estado”, afirmou. Eis os principais trechos da conversa.

A Receita está passando por um momento de fortes pressões. Como lidar com isso?
Pressões sempre ocorreram. A Receita é um órgão muito sensível. Afinal, ela lida com tributos. Como lembra o meu colega professor Ives Gandra, tributo é norma de rejeição social. Essa matéria não é vista com muita simpatia em lugar nenhum do mundo, em nenhuma época.

A Receita sofreu pressões no governo de Fernando Henrique Cardoso como sofre agora?
Sim, claro. Sempre.

Mas em maior ou em menor grau?
São diferentes. As circunstâncias mudam, mudam também todos os fatores que intervêm. Não se pode falar que seja maior, igual ou menor. Apenas são diferentes. Não fui só secretário de Receita. Fui secretário de Fazenda também, por oito anos. Posso dizer que havia tanta pressão quanto. Esses são órgãos de relevante sensibilidade. A condição que demandei para assumir a Receita foi a mesma para assumir a Secretaria de Fazenda — a de que deveria ser um órgão de estado, sem nenhuma interferência política. Isso foi assegurado pelo ministro Pedro Malan e pelo presidente Fernando Henrique Cardoso.

E o sr. conseguiu que o compromisso fosse cumprido durante todo o período?
Sim, mas deu trabalho. Deu trabalho porque encontrei situações estabelecidas que envolviam interferências políticas. Com habilidade, tive de desfazê-las. Posso dizer que, quando saí da Receita, não havia o mais remoto sinal de interferência política.

Quais foram os setores que mais pressionaram?
Os setores são os de sempre. Política é exercício de poder. Receita é um órgão importante e há a larga tradição brasileira dos interesses políticos tentarem sobrepor-se. Receita tem de ser órgão de estado, repito. Não pode ser órgão de governo, não pode perseguir ninguém, não pode proteger ninguém.

Como o sr. enxerga o papel de investigação da Receita?
A Receita tem, na sua natureza, a obrigação de investigar a matéria tributária. Não existe um órgão geral de investigação. Há investigações que são de natureza criminal, e a Constituição reserva essa competência para o Ministério Público e para a polícia. A Receita ou as Receitas (refere-se aos Fiscos estaduais), as administrações tributárias, têm a responsabilidade de fazer a apuração dos fatos tributários. Se, circunstancialmente, um fato tem uma implicação criminal, há uma regra estabelecida, desde o meu tempo. É uma regra muito bem definida e muito clara, que consiste em, no curso de uma investigação tributária, se forem encontrados indícios de crime contra a ordem tributária, observar um rito. Como isso decorre de um lançamento, é de se esperar que o lançamento seja definitivamente aperfeiçoado, sob pena de se fazer uma representação criminal de um fato tributário que a Receita não reconhece. Uma inconsistência. Por isso que a lei diz que a representação deve ser feita após a conclusão do processo administrativo fiscal.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/Crusoé“Não fui só secretário de Receita. Fui secretário de Fazenda também, por oito anos. Posso dizer que havia tanta pressão quanto. Esses são órgãos de relevante sensibilidade”
E qual deve ser o papel do antigo Coaf, agora UIF, também alvo de críticas?
O Coaf é um órgão de troca de informações, nada mais do que isso.

É um órgão essencial para o combate à lavagem de dinheiro.
Sem dúvida! Ele foi criado para isso. Eu participei da instituição do Coaf, no governo do Fernando Henrique. Ele é um instrumento muito útil para a troca de informações.

Há uma tentativa de enfraquecer o órgão.
É natural que pessoas se sintam incomodadas com ações desse gênero. Isso não é novidade no Fisco nem no Coaf.

Em sua opinião, esse trabalho deveria ser feito sob a estrutura de qual ministério?
Isso pra mim é indiferente. O vínculo administrativo é irrelevante. O que conta é a competência do órgão. Não se pode alterá-la. O que importa é o que ele pode fazer e quem são as pessoas à frente dele.

O sr. é apontado como um dos padrinhos do novo secretário da Receita. Qual é a sua relação com ele?
Quando fui secretário da Receita, ele foi superintendente da 2ª Região Fiscal, cujo âmbito territorial é a Amazônia. Não fui eu que o nomeei, mas entendi que o trabalho dele era bom. Por isso o mantive no cargo onde ele ficou durante toda a minha administração. Ele também exerceu funções em outras administrações, como a de Coordenador Nacional de Aduana. Também foi secretário de estado de Fazenda do Pará e até há pouco estava no BID. Eu o conheço, é claro, e tenho admiração por ele como um profissional íntegro, competente, habilidoso, experiente.

O sr. foi consultado sobre o nome dele?
Informei o perfil, falei sobre os requisitos para o cargo. Mas eu nem sequer tenho legitimidade para indicar ninguém para nada. E não o faço, nunca o fiz.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/Crusoé“Receita tem de ser órgão de estado. Não pode ser órgão de governo, não pode perseguir ninguém, não pode proteger ninguém”
Então alguém do governo o consultou? Quem foi?
Sempre há essas conversas, alguém pergunta sobre nomes, faz uma sondagem. Isso é normal em qualquer governo. Colegas da Receita e da Fazenda, amigos, colegas de trabalho, perguntaram. Alguém pediu para perguntarem. Mas não falaram em nomes. Eu forneci o perfil que considero ideal. Apenas isso. Não acho que tenho legitimidade para indicar alguém, como já disse, mas, se tivesse, certamente o indicaria. Não é o único nome. Há outros, obviamente. Mas ele se encaixa perfeitamente no perfil que forneci.

O sr. administrou a CPMF por anos. Defenderia a volta do imposto?
Não tenho restrição ao imposto sobre transações financeiras. Administrei a CPMF por oito anos, sem problema. Foi um instrumento muito eficiente para a identificação de sonegação.

Mas o momento econômico era outro.
Claro. Hoje esse tipo de imposto só funcionaria com uma alíquota baixa, que alcançasse apenas uma ponta, o saque, não o depósito. Digo isso porque seria uma medida para não haver desestímulo a aplicações. Também defendo exceções, como as relativas a quem tem imunidade tributária, como igrejas e os cidadãos com salários baixos.

Quais são, na sua avaliação, os principais problemas da área tributária brasileira?
Nós temos alguns problemas emergenciais. Um deles é surpreendentemente encarado como se não existisse. Há uma espécie de indiferença coletiva sobre algo que considero que possa ser uma catástrofe: o Supremo vai julgar, até o final do ano, embargos declaratórios de uma decisão já tomada que envolve, tecnicamente, a exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS Cofins. Qual é a expressão monetária disso? No projeto de lei das diretrizes orçamentárias, em que são elencados os riscos fiscais, o dano potencial é de 229 bilhões de reais. Tenho elementos que mostram que esse número está subestimado. Se isso acontecer nesses termos, se esse assunto não for tratado de frente, nós estaremos diante de algo que pode comprometer a reforma previdenciária. E o curioso é que ninguém trata desse assunto. É um não assunto. Nós estamos falando de algo que é quase o dobro do déficit fiscal brasileiro.

E quais sãos os outros problemas?
Eu entendo que é o próprio processo tributário. É dele que nascem todos os conflitos, os conflitos que têm como foco o Fisco e o contribuinte. Os litígios tributários brasileiros, segundo o dado mais recente que tenho, montam a 3,3 trilhões. Esse é um valor equivalente à metade do PIB brasileiro. O nosso processo é completamente disfuncional. Nós temos hoje, em tramitação na Justiça, cerca de 79 milhões de processos. Desses, aproximadamente 31 milhões correspondem a processos de execução fiscal — ou seja, mais de 39%. Supondo que não ingresse mais nenhum processo de execução fiscal, o que é uma hipótese heróica, falsa, evidentemente, apenas para dramatizar, e, supondo que a execução fiscal ocorresse no mesmo ritmo dos últimos anos, para acabar o estoque, seriam necessários 12 anos.

O que o sr. considera fundamental para a prometida reforma tributária?
Eu começaria lidando com processos, com a resolução desses litígios, com burocracia —  e, é claro, lidando com programas específicos de tributos, para os quais não é necessária reforma abrangente. Vamos a um exemplo. Grande parte do mundo ocidental adota como forma de tributação de consumo o chamado imposto sobre valor agregado, o IVA. O Brasil tem um modelo de IVA, o ICMS. Ele é bem diferente dos outros, é verdade. Mas aí se diz assim: “se adotar o IVA, nós vamos adotar um modelo dos países que prosperaram”. Não. Tem países que não prosperaram e têm IVA. Posso listar uns cinquenta. E vou dar um contraexemplo de um país que é a maior potência do mundo, em qualquer aspecto: os Estados Unidos. Os americanos são uma exceção formidável. Não têm IVA, mas adotam um imposto de vendas a varejo, a Sales Tax. Isso não significa que eles sejam mais desenvolvidos por causa disso. O que quero dizer é que a Sales Tax e o IVA dependem das circunstâncias e são meras formas de extração tributária. Não há garantia de que assegurem a salvação.

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  1. Eu trabalhei na Receita Federal. Aquilo é uma máfia. Dar autonomia à Receita é acabar com qualquer possibilidade de um governo sério consertar aquele órgão criminoso. O que precisa acabar é o Conselho de Contribuintes, isso sim. Não é possível que decisões que envolvem autos de infração de muitos milhões sejam, no final, julgadas por uma comissão de meia dúzia, sem fulcro no processo, metade desses composta de contribuintes que nunca viram legislação tributária na vida.

    1. Eu penso exatamente assim. Eu não daria autonomia nem à Receita e nem ao Banco Central.

  2. Entrevista e respostas consistentes de quem conhece profundamente o assunto, poderia estar contribuindo, e muito, com o governo neste momento.

  3. Qualquer país que o sistema tributário colete mais de 33% de tudo que é produzido e não tenha um retorno condizente para a população em serviços, está sendo praticado um ROUBO imenso. Nossos legisladores, os componentes do executivo e do judiciário estão pensando em aumentar mais ainda este quinhão. A inconfidência mineira se deu por Portugal cobrar 20%. Vejam a absurda cifra que chegamos. Lamentável!

    1. 33%? Isso é devido à enorme sonegação. O Estado tenta arrecadar mais de 60% de tudo que é produzido, e consegue em muitos casos.

  4. Conversa fiada desse cara. Ele é um dos culpados da grande benevolência do Fisco federal com as grandes empresas e grandes Bancos.Pesquise, Crusoé, nas datas das ações judiciais para cobrança de dívidas dessa turma de quando elas remontam. Surpresa: das gestões desse cara aí. Só foi cruel com as pessoas físicas ao nunca querer atualizar a tabela do IR. Agora está aí se postando como arauto da justiça. Vá se catar !

    1. Você tem olhos de lince. parabéns pela lucidez cristalina e isenta.

  5. Competência, seriedade e bons serviços prestados ao país. Infelizmente uma estirpe de homens públicos muito rara nos dias de hoje... Faz muita falta!

  6. A verdade é que a sonegação de tributos é gigantesca no Brasil. Isso acontece por falta de empenho da Administração dos governos que passaram e da própria Receita Federal que nunca fiscaliza os maiores empresários e políticos.

    1. RF é coisa asquerosa . Apenas cobram os pequenos pois estes não têm como pagar as propinas e nem advogados de bancas caras.

    2. Reforma da Previdencia=800 bilhões em 10 anos Sonegação = 500 bilhões por ano Inadimplência = 400 bi/ano Está explicado pq não querem CPMF? Nem com alíquota de 0,000001 passa no congresso!

    1. Esclarecedora entrevista com Everardo Maciel. Para quem não teme pensar e refletir de forma independente sobre nossos desafios.

    2. Concordo Sérgio, ponderação hoje é entendida como fraqueza, equilíbrio como perda de tempo, é triste.

  7. Só faltou perguntar se durante todos os anos em que ele esteve a frente da Receita Federal não foi encontrado nada de movimentação financeira suspeita.

    1. Júlio e Paulo mto bem, faltou está perguntinha. Mas estás entrevistas, são encomendadas

    2. Perfeito, direto na ferida. O nosso jornalista perdeu a oportunidade de ir direto na jugular e expor ainda mais o sonso do FHC.

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