MarioSabino

Vavá e um minuto de silêncio

01.02.19

Entre os maiores roubos perpetrados pelo PT, está o do meu inconsciente. Já não tenho mais sonhos enigmáticos que possam ser objeto de decifração. Praticamente todos têm como personagens petistas ou gente relacionada a eles de alguma forma. Já sonhei até que era ministro do Supremo Tribunal Federal, com gabinete espremido entre o de Ricardo Lewandowski e o de Dias Toffoli (Gilmar Mendes fez uma ponta). E os enredos são tão profundos quanto os dos manifestos pela defesa do Estado de Direito assinados por aquele advogado que passeia metido em bermudas pelos corredores do STF.

No plano mais geral e evidente, o PT vem roubando ainda aqueles momentos em que o cotidiano costumava entrar em suspensão, não importa se mais ou menos breve, para que pudéssemos olhar para dentro de nós mesmos e ecoar as perguntas irrespondíveis sobre o sentido da existência.

Estou falando da morte e dos seus ritos de luto, como velórios. O PT e o seu comandante máximo transformaram a morte de Marisa Letícia em ato ordinário de defesa judicial. E tentam agora fazer o mesmo com a morte de Vavá, irmão de Lula, cuja missa de sétimo dia também deverá ser explorada politicamente no plano mais baixo do advérbio. Eles roubaram – inclusive de si próprios — o caráter arcano dessa senhora que, cedo ou tarde, nos visitará para nos ceifar deste mundo. É um roubo que ultrapassa o âmbito dos Lula da Silva.

A única maneira de fazer frente a esse segundo roubo (desisti de tentar recuperar o meu inconsciente) é homenageando com um minuto de silêncio político a nossa perplexidade diante da morte. O meu minuto de silêncio político pode ser lido abaixo. Intitula-se “Nada mais do que a verdade”. Foi escrito em 2012, em seguida a acontecimentos perturbadores.

Aí está:

Morre-se sozinho, eis o truísmo que hoje recusamos a aceitar, expresso nos provérbios antigos, escavado na filosofia da aceitação da morte, esquecido na gaveta dos clichês, entre as cartas de amor amarelecidas, os primeiros traços dos filhos, as fotografias desbotadas de quem já não lembramos os nomes. O truísmo que nos espanta até a última linha de nosso epílogo, porque tentamos espantá-lo em meio às misérias neuróticas, às infelicidades do mundo, às originalidades da arte.


Morre-se sozinho quando se está cercado pela família ou o grande amigo não arreda o pé de nosso leito de morte. Morre-se sozinho quando se espalma a mão na espera vã do calor de outra mão ou quando a se tem apertada pela do filho, da mulher, do marido, do pai, da mãe ou da enfermeira contratada para cancelar do cotidiano alheio quem insiste em adiar o fim. A morte de quem dessas mãos carece não é mais solitária.

Morre-se sozinho ao lado de Deus ou do lado ateu. Morre-se sozinho em casa. Em lençóis de algodão egípcio; em roupas de cama de algodão barato; deitado sobre colchões de espuma manchados. Morre-se sozinho em hospitais, sejam públicos, cujos mortos servem apenas para engrossar estatísticas, ou particulares, em que os moribundos também engordam a contabilidade. Morre-se sozinho nas mortes lentas, iniciadas por tumores contidos por alguns anos em sua fome permanente, ou nas fulminantes dos ataques cardíacos e derrames em que a sequela é só uma. Nos acidentes fatais, a solidão é comprimida pelo desespero.

Morre-se sozinho quando se tem um amor ou não se tem. Quando se tem saudade de um amor, de dois, de três, ou dessa saudade já não guardamos mais lembrança (que é quando o amor morre de vez). Morre-se sozinho na lucidez ou na demência (talvez um pouco menos entre os fantasmas da demência). As causas da morte são várias, como descrevem os manuais médicos, ou bem poucas, como sintetizam os atestados de óbitos em que a precisão científica dá lugar à burocracia. Não há certificados para a solidão onipresente.

Os mortos têm múltiplas biografias, mas a solidão da morte é a mesma para todos (o suicida tenta acentuá-la, o que o torna ainda mais patético). É por esse fato tão inescapável quanto a própria morte que se chora. É de nós mesmos que nos apiedamos quando o outro morre — não só porque morreremos, e sim porque também morreremos sós. E, no espetáculo da morte, entramos em agonia, que é simulacro daquela moribunda que já não chora, mas arfa e ronca diante de nós, seres já invisíveis, na sua tentativa de aspirar o ar cada vez mais rarefeito e na certeza de que somente pode aspirar ao vácuo.

É para nos enganarmos sobre essa solidão que homenageamos os mortos recém-morridos. É para nos enganarmos que dizemos também ter morrido uma parte de nós com aquele que se foi. E, durante certo tempo, o visitamos em seu túmulo, e ele nos visita em nossos sonhos. E continuamos a celebrá-lo por contáveis anos, e com ele conversamos a intervalos que vão se espaçando até que o esquecemos em sua solidão post mortem. Em nossa solidão pré-morte. Morre-se sozinho, e da solidão dos mortos esquecemos, ou queremos esquecer, porque vivemos sozinhos, em que pesem as evidências em contrário.

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  1. Caro Mário Sabino Espero às Sextas-feiras para ler seu artigo. Sempre reclamando que você deveria escrever mais!. Hoje relendo seus artigos encontro para minha surpresa,este inédito da morte do VAVÁ,irmão o homem mais honesto do mundo. Uma crônica pungente,que descreve com intensidade e emoção a sua certeza ,que é a minha,da solidão da nossa morte. Ainda bem que você tem muitos anos de vida pela frente,o que não é meu caso.

  2. Sabino se você tem amor por alguém você nunca está só o seu corpo poderá ser solitário não sei coração. Se você usa sua mente para estudar ou trabalhar só fica sozinho com seus pensamentos e eles te transbordam de imagens. Arranja uma cachorrinha Piaf para o Napoleon. Cuide de plantas. Faça um jantar especial para você e tome um vinho de sabor inesquecível. A solidão é útil e nos faz valorizar a vida.

  3. uTexto para ler e reler.pena que todos indistintamente não possam aprecialo e também compartilhar de geração em geração. Obrigado.

  4. O homem , meu caro Sabino, é um ser em estado de solidão, e é dentro dela que se descobre, a cada dia, sabendo que caminha (sozinho) para a morte.

    1. Eliana,faço das suas palavras as minhas! 👏👏👏👏

  5. "Nada mais do que a verdade" _ um texto muito bem escrito que nos coloca frente a frente com a senhora que nos ceifará com certeza desse mundo insano !!

  6. O sábio Sabino escreve de forma tal que não sei se é metáfora... alguém entendeu quem é "aquele advogado que passeia metido em bermudas pelos corredores do STF"? Se positivo por gentileza mencionem abaixo.

    1. Kakay, defensor dos corruptos oprimidos e amigo dos ministros nomeados por eles.

  7. Lamentáveis as cenas veiculadas desse velório..desrespeito total ao morto em minha opinião. Não sei como a família permitiu isso, se é que permitiu. Recomendo que todos as vejam e tirem suas próprias conclusões...

  8. Nossa Mário chorei. Tudo tão efêmero tal qual nossa curta existência. Morremos ao nascer e nascemos ao morrer esta é minha juvenil esperança apesar dos meus 65 anos. Abraço,Lucila

  9. Sim. O PT está morto. E aos poucos deixará de povoar nossos pesadelos, esquecido em sua solidão. Lendo isso, conclui também que já estou morto. Obrigado por me avisar.

  10. Muito bom. Pena que petista jamais entenderá. Não dá pra criar sindicato sozinho e, tenho certeza, eles já devem ter um só pra defuntos!

    1. Mario Sabino sempre brilhante. fala do pt com indignação e ao mesmo tempo resignação. Sem baixeza e até com nobreza. Parabéns!!!

    1. perdão, fui perverso. ninguém por mais ruim que seja merece este comentário meu. peço-te desculpas.

  11. O PT não morreu, bobo quem pensa assim. O PT está vivo em cada brasileiro que adora o estado paternalista. Quase todos os brasileiros.

  12. Entendo e concordo com o que você diz e entendo que o trauma é profundo. Mas a lição que fica desse período maldito petista é que devemos andar para a frente, tomar cuidado e tratar dos assuntos que eles não trataram. Do contrário, o trauma vence e daqui a 50 anos veremos viúvas do antipetismo em surtos obsessivo-compulsivos. Não se permita tal coisa, Mário. Enterre os defuntos e siga em frente.

  13. Nascemos e morremos sós. Apenas o gêmeos nascem acompanhados. E só se morre acompanhado quando se morre em grupo. No mais, é encarar a estrada sem companhia, sem posses e sem documentos ( No além não precisa, a tecnologia está muito à frente, rsrs.). Não só a vida, como disse Guimarães Rosa, quer de nós é coragem. A morte exige! Já o Vavá, coitado, não apenas morreu só como ignorado. Roubaram-lhe até o rito de passagem. O Lula não dispensa nem esse roubo.

  14. Nascemos sós e morremos sós. Só os gêmeos, trigêmeos e mais nascem acompanhados. E só se vão juntos os que morrem em grupo.. No mais, é encarar a viagem

  15. Sofisma. Muito bem escrito, como de praxe o autor o faz, mas mesmo assim um sofisma. (O texto de 2012; o de agora é uma transliteração do sofisma, válido como estilo, não como análise). Morre sozinho, ou sente-se sozinho quem em sua arrogância, julga-se o centro do universo e se afasta de Deus - da ideia de um Deus, uma inteligência superior e primeva ao homem. O veneno é tão poderoso quão sutil e usa uma arma infalível:a vaidade dos homens. Também dos jornalistas. Molusco que o diga.

    1. É simplesmente uma ode existencial ao indivíduo em detrimento de sua tomada como ser, mais que social, político. A meu ver, não se desvia para a discussão metafísica se o homem é essencialmente religioso ou não.

    2. Isso. Isso. Isso. (E isso porque o comentário precisa de no mínimo 10 letras).

    1. Magistral, Sabino. E parabéns à Crusoé e ao Diogo por ter companhia dessa estirpe. Um dia quero escrever algo pelo menos minimamente parecido. Pena q nenhum petista consiga entender mesmo nada do q foi dito. O criminoso presidiário então....

  16. Lúcido. Parabéns pela introdução e pela reedição. Nas entrelinhas, a certeza de que "fazem o diabo" para alcançar seus interesses. Até a morte é usada sem escrúpulos por essa gangue. E como Sabino "sabiamente" frisou, uma hora essa senhora também virá ceifá-los dessa existência. Depois o bicho pega.

  17. Sabino, diz um velho ditado oriental: "Só se vive duas vezes, a primeira quando nascemos, a segunda quando o beijo da morte nos alcança". Se viemos sozinhos e partiremos sozinhos, eu não sei. Não me lembro da primeira vez que vivi, espero estar presente na segunda.

  18. Somos nós que inventamos a solidão! Muito obrigado pelo excelente texto, que nos faz refletir sobre muitos fatos totalmente esquecidos do dia a dia. O crer, o acreditar, a ganância, a infelicidade, o trabalho, as conquistas intelectuais, amorosas e profissionais, a falsa cultura, a imunização cognitiva, ... sempre nos traz solidão. É o efeito maior de todas essas e de muitas outras causas. O nosso ego nasce e morre solitário por ser, por principio, arrogante e destruidor do ambiente em que vive!

    1. Deve ter sido bom o comentário ,como sempre.Me ajudem por favor .Como abrir as matérias?

  19. Sua poesia, Mário Sabino, é magistral ! Parabéns ! Realmente morre-se sozinho, sempre e inadiavelmente. Você precisa nos brindar com mais poesias, necessitamos desta arte, nesse nível e qualidade, já que mestres antigos, como Pessoa, Drummond e Quintana se foram e ficamos órfãos.

  20. "Morre-se sozinho ao lado de Deus"? Não para quem acredita n'Ele. Estar ao lado de Deus é não estar sozinho por definição. Quem está ao lado de Deus está com Ele na hora da morte também. Conforme escreveu Ratzinger (Bento XVI), o inferno é a solidão absoluta na hora da morte, é o desamparo de estar só, mas quem está com Deus se salvará deste destino porque é acolhido no amor absoluto de Deus. Quem está com Deus não estará sozinho na hora da morte.

    1. É uma ode, puramente existencial, ao indivíduo. Se contextualizada à introdução, por sua leitura, veria, com todo o respeito, quão desnecessária é essa ‘admoestação’ religiosa trazida do Ratzinger.

  21. Mario Sabino está aqui a fazer da prosa astuta um ensaio despretensioso que descreve a psicogênese de estados mentais graves em sociedades totalitárias e persecutórias. O universo das universidades públicas tem permanentemente no seu cotidiano essa situação psíquica de loucura latente que o Brasil assistiu no showmicio de Marisa Letícia e no velório de Vavá. É urgente uma mídia lúcida e disposta pra desmontar esse teatro histérico. Assistam ao Congresso da ANDES 2019 com docentes por LulaLivre.

    1. Morrer sozinho, filosofia barata, de fundo de quintal, consubstanciada de sofisma.

    2. * por "universo das universidades" leia-se "ambiente das universidades"

  22. Lula agoniza politicamente sem herdeiros, o que adia a solidão do moribundo lhe garantindo o interesse partidário. Na deseperada luta pela sobrevivência política, ele recorre a todo tipo de remédio: da mezinha caseira à droga estrangeira de última geração; do enterro ou missa de sétimo dia ao prêmio Nobel da paz. Enquanto seu nome estiver no jornal, o político pelo menos respira; vigor e sobrevida mais duradoura só mesmo a Academia de Ciências da Suécia poderá lhe dar.

    1. Este vídeo mencionado pela Estela TEM que ser visto POR TODOS os leitores que desejam entender o que significa a DEMOCRACIA PT. O pior USP mantida com dinheiro do nosso IMPOSTO.

    2. Esta semana houve um evento na São Francisco da USP pela democracia. Bradavam lá Suplicy ( who?) Profa Lisete, Laerte, Manuela D'avila o atual presidente do PSOL e estudantes que gritam e fumam maconha. Com pôster de Jean Wyllys o personagem da vez que quer se fazer passar por Marielle viva. Arthur do Val fez vídeo para o canal MamãeFalei do YT. Vejam. É a USP. Eles hostilizam e batem no youtuber que foi lá pra debochar. A cara da esquerda é aquilo mesmo.

  23. No enterro do Vava, parecia que o morto era o Lula, ppis ninguém falou nada sobre o falecido, sobre a vida que levou, sobre seu legado. No velorio, o defunto foi o coadjuvante.

  24. Mario seu artigo é SENSACIONAL! Dados confirmados indicam que morre-se sózinhos e sem o remédio Rituximabe no CIESP-SP uma Brumadinho na lama da saúde publica pacientes com Linfoma por que o governo nao compra o remedio eficaz, vale uma investigação de Cruzoé. O Brasil é um atoleiro!

  25. Mario, o petismo e os anos de embate não roubaram seu talento literário. Ao contrário, para sorte dos leitores de Crusoé, que podem acordar com uma preciosidade desta. Adoro esse seu texto de 2012 e agradeço pela delicadeza de resgatá-lo nesta semana de muita morte e poucas homenagens.

  26. “Nada mais do que a verdade” - PARABÉNS . Merece estar na cabeceira da cama para que eu jamais me esqueça da VERDADE 🙌

  27. O PT é um cadáver em estágio avançado de decomposição . Já nem consigo me surpreender : O recente manifesto de apoio “DEMOCRÁTICO” a Jean na USP foi DEPLORÁVEL. O vídeo publicado no YouTube mostrando a violência contra alguém de pensamento contrário me faz pensar : Parte do nosso imposto sustenta uma elite que estuda na USP - Esquerda Caviar !!!

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