Pedro França/Agência SenadoExposição sobre o 8 de janeiro na Câmara dos Deputados

O mausoléu da democracia

O projeto de um museu devotado à memória da intentona pateta do 8 de janeiro quer exaltar a nova ordem petista, mas acaba mitificando o bolsonarismo
12.01.24

A estátua do príncipe Vladimir em Moscou é um metro mais alta do que o monumento ao mesmo monarca ancestral que se ergue sobre uma colina de Kiev. Na cerimônia de inauguração da estátua moscovita, Vladimir Putin fez um discurso de exaltação à grande nação una inaugurada por seu xará do século 10. O príncipe seria o fundador de um gigante territorial que, segundo o presidente russo, abrange Rússia, Belarus e Ucrânia. Desvelava-se no evento não só o monumento feito na medida para superar o similar ucraniano, mas também a ambição imperialista de Putin. A estátua de 20 metros foi inaugurada em 2016, dois anos depois da anexação da Crimeia e seis antes da invasão da Ucrânia.

A estátua em Kiev data de 1853, quando a Ucrânia pertencia ao Império Russo. Foi concebida, portanto, no espírito de celebração de uma grande Rússia cristã e indivisível. Mas os ucranianos hoje apropriaram-se de Vladimir, que reinou em Kiev, como um símbolo de sua independência. Quando Putin inaugurou o monumento em Moscou, o então presidente da Ucrânia, Petro Poroshenko, protestou contra o que julgou ser uma apropriação indevida da história de seu país.

A guerra das estátuas é discutida nas primeiras páginas do excelente The Story of Russia, livro do historiador inglês Orlando Figes lançado em 2022. O episódio serve para o autor ilustrar a perene disputa política sobre o passado que marca a Rússia. Figes lembra uma piada que circulava nos tempos soviéticos: “A Rússia é um país com o futuro definido; é só o passado que é imprevisível”.

Nem ucranianos nem russos, esclarece o historiador, têm base para reivindicar Vladimir como fundador de suas nacionalidades, pois ainda não existia uma Rússia ou uma Ucrânia no século 10. E pouco se sabe com certeza sobre Vladimir, cuja vida é narrada em crônicas e hagiografias escritas bem depois de sua morte. Consagrado anacronicamente como o primeiro czar, ele é mais um mito do que uma figura histórica.

Essa reconfiguração (ou, muitas vezes, falsificação) da história como mito é o tema forte de The Story of Russia. O autor sustenta que o passado mítico tem um peso muito particular na Rússia, e ao fim do livro eu saí convencido de que é assim mesmo. Mas me parece que muitas outras nações, se não todas elas, amparam-se em mitos para assegurar uma identidade comum entre seus cidadãos.

Não se deve confundir o mito com simples mentira – há verdades sobre a natureza humana que só os mitos antigos nos contam –, e tampouco se deve considerar que ele é sempre uma fábula ou lenda. Inesgotável, a lista de episódios históricos que ganharam contorno mítico inclui, entre outras coisas, grandes batalhas (Maratona, Waterloo, Stalingrado), travessias de cursos d’água (Júlio César cruzando o Rubicão, George Washington atravessando o Delaware), e quedas, muitas quedas (de Constantinopla, da Bastilha, do Muro de Berlim).

Mesmo quando incentivada ou forçada pela mão dura do Estado, a criação do mito nacional depende da adesão popular. O herói e seus feitos têm de ganhar corações e mentes. Depois do mito, vem o monumento. Antes que se erguessem suas estátuas em Kiev e Moscou, Vladimir foi venerado como santo da Igreja Ortodoxa e da Igreja Católica.

Por isso me pareceu prematuro o projeto, anunciado na sexta-feira passada, de construir um Museu da Democracia em Brasília. Trata-se de um esforço artificial de consagrar a noção de que a democracia brasileira foi “restaurada” com a eleição de Lula, o que é um mito caro ao PT (e aqui emprego “mito” em seu sentido mais vagabundo: como sinônimo de história inventada para iludir o povo parvo). Ao mesmo tempo, a iniciativa dá uma relevância descabida à intentona pateta do 8 de janeiro.

Não estou entre os que têm o quebra-quebra em Brasília na conta de uma simples arruaça promovida por manifestantes que perderam o controle: a intenção clara dos bolsonaristas que tomaram a Praça dos Três Poderes era melar o resultado da eleição presidencial. Mas é risível acreditar que o vandalismo por si só faça um golpe de Estado. Alçada ao lugar de grande ameaça à democracia brasileira, a Horda Canarinha saiu estranhamente validada, dignificada – mitificada.

O museu ocupará um terreno na Esplanada dos Ministérios e será construído ao custo de 40 milhões de reais, advindos do PAC, programa federal “restaurado” pelo festival da nostalgia que é o governo Lula 3. O projeto arquitetônico ainda será escolhido em um concurso nacional, mas o Ministério da Cultura (MinC) e o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) já botaram no ar um site pernosticamente intitulado Repositório Digital para a Construção do Museu da Democracia. É todo escrito em um jargão acadêmico-tecnocrático eivado de clichês progressistas (conquistas das lutas sociais, problematização do conceito, etc.). Há frases tristemente carentes de sentido. Eis, por exemplo, um dos objetivos que o futuro museu espera cumprir: “desenvolver ações educativo-culturais voltadas à mobilização perceptiva, emotiva e cognitiva para os diferentes públicos, estimulando a reflexão crítica em relação a democracia.”

O tal Repositório Digital traz ainda um vídeo de dez minutos sobre o 8 de janeiro, que no entanto começa em uma data anterior: 17 de abril de 2016, quando a Câmara dos Deputados votou a favor do impeachment de Dilma Rousseff. Insinua-se assim mais um dos mitos (de novo, no sentido barato da palavra) do PT: o “golpe de 2016”. Uma nota emitida pelo MinC para anunciar o futuro museu diz que ele “será construído com a união dos setores democráticos do país e não estará ligado a um setor político”. Para o PT, no entanto, os “setores democráticos” abrigam somente o próprio partido e seus apoiadores e simpatizantes.

Entre a cupidez orçamentária do Congresso, a autocelebração demagógica do Planalto e o centralismo censório do STF, nossa democracia segue tão ou mais disfuncional do que sempre foi. Não se fazem mitos dessa matéria mesquinha. Podem-se fazer museus, sim. Mas para que mesmo?

 

Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor

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  1. Museus são no geral para guardar a memória daquilo que não mais existe. Nesse sentido, o PT fazendo um "Museu da Democracia", me parece bem coerente com a linha de ação desse primeiro ano de Lula 3.

  2. PT aprendeu certinho com a Rússia: a história é plástica consoante a vontade política reinante no presente. O povo brasileiro saberá ignorar esse museu e a ladainha contada. Pena a dinheirama que será gasta...

  3. Assim como foi construído o Vaticano, símbolo do Salvador da humanidade , este museu deveria ser um Santuário dedicado ao Santo salvador da democracia latino americana.

  4. Prezado Colunista: o objetivo da horda de arruaceiros que invadiu e destruiu as sedes dos três poderes era, sim, a aplicação de um "golpe de Estado". Com o vandalismo, esses "patriotas" pretendiam obter o APOIO DAS FORÇAS ARMADAS para destituir o governo eleito pelas urnas ("casualmente" as mesmas urnas que elegeram TODOS os políticos que assumiram seus cargos) tidas PELOS VÂNDALOS como "fraudadas", sem que seu líder ou qualquer outro tenha apresentado qualquer PROVA ao longo da história delas.

    1. Até gente da própria esquerda nega que foi tentativa de golpe ou ato terrorista. Além do já consagrado Aldo Rebelo, o próprio presidente do PCO disse isto. O PCO!

  5. Os 40 milhões já surrupiados para este mausoléu petista, não serão suficientes nem para as fundações, dada a voracidade dos corruptos envolvidos na iniciativa.

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