Reprodução/Redes SociaisJéssica Vitória Canedo: suicídio após linchamento virtual

O canhão da influência

Perfis que atuam de maneira coordenada, como Choquei, serão desafio nas eleições de 2024
12.01.24

Agências estão faturando milhões ao explorar com maestria os algoritmos das plataformas digitais, como X, Instagram e TikTok. Ao fazer com que dezenas ou centenas de perfis publiquem sobre um determinado assunto ao mesmo tempo, elas conseguem encantar os algoritmos dessas companhias, que passam a acreditar que aquele tema domina a atenção do povo. A mensagem, então, passa a ser republicada ainda mais, atingindo milhões de pessoas e virando um assunto nacional. Esse método tem sido fartamente usado para turbinar a venda de seus produtos e já ensaiou os primeiros passos na política, no pleito presidencial de 2022. Nas eleições municipais deste ano, o impacto poderá ser ainda maior.

A ação coordenada de perfis nas redes sociais mostrou sua capacidade em 23 de dezembro, quando a estudante Jéssica Canedo, de 22 anos, tirou a própria vida após ser alvo de 34 contas de internet simultaneamente. No dia 18 de dezembro, a página Garoto do Blog (“sua primeira fonte sobre a vida escandalosa da elite brasileira”, diz a apresentação) publicou prints de tela de uma falsa conversa que seria de Jessica com o comediante Whindersson Nunes. Ambos negaram a veracidade das mensagens e disseram que não se conheciam. Após passar por um linchamento virtual, a jovem escreveu um longo texto no Instagram, pedindo que o conteúdo falso fosse excluído: “Vocês estão falando da minha aparência, da minha classe social, xingando minha família, ameaçando, me chamando de interesseira, me comparando com as ex’s dele… Vocês não sabem como está o psicológico de quem está recebendo os xingamentos e as ameaças”. Raphael Sousa, dono da página Choquei, publicou um comentário no texto de Jessica insinuando que o pedido era longo demais. “Avisa para ela que a redação do Enem já passou. Pelo amor de Deus!”. Na sequência, dezenas de páginas passaram a republicar o conteúdo mentiroso e a debochar da jovem. No dia seguinte, Jéssica se suicidou. A decisão de tirar a própria vida, um gesto radical e sempre solitário, só pode ser atribuído à própria jovem. Mas não há dúvida que a pressão a que ela foi submetida contribuiu com esse desfecho trágico.

Esse mesmo canhão digital capaz de formar a opinião de milhões de pessoas sobre Jéssica, uma pessoa desconhecida de Araguari, Minas Gerais, já esteve a serviço da política. Raphael Sousa, o dono da Choquei, é um conhecido divulgador de informações favoráveis ao governo Lula e à primeira-dama Janja. Apesar de ser uma página de fofocas, que tem como um de seus principais assuntos o Big Brother Brasil, BBB, a página publicou mais de dez notas de política por dia na época das eleições do ano passado. Muitas eram feitas com informações transmitidas por Janja em primeira mão. Ela e Raphael se conheceram através de mensagens pelo Instagram e, a partir daí, a amizade foi crescendo. Na comemoração da vitória de Lula, ela o convidou para subir no carro de som oficial na Avenida Paulista. No dia da posse, Raphael teve acesso privilegiado ao Palácio do Planalto, em Brasília, e divulgou informações dos seus bastidores. O apoio ao petista por Raphael e sua equipe é mais que declarado. Edson José da Silva Júnior Silva, ou “Júnior Silva”, o primeiro a ser contratado para administrar a página Choquei, tem vídeos no TikTok em que se mostra orgulhoso sua preferência política. Em um deles, faz uma dancinha segurando uma toalha com a imagem de Lula. Em outro, ele está confortavelmente abraçado a Lula e Janja e beija a cabeça do petista. Fotos que circularam na internet mostram Lula retribuindo o agrado com um beijo na testa.

 

 

Todo brasileiro tem pleno direito de expressar opiniões políticas na internet. Mas o que a Choquei faz vai além disso. Como um perfil no Instagram e no X, antigo Twitter, a empresa acumulou 27 milhões de seguidores divulgando fofocas de celebridades. Uma das notícias publicadas no perfil Choquei no X/Twitter nesta quinta, 11, falava que “Maycon está muito emotivo nesta manhã e já chorou na cozinha, sala e despensa da casa [do BBB]”. O ritmo de publicações é alucinante: cerca de um texto a cada 20 minutos. Praticamente todos têm entre 50 mil e 150 mil curtidas. Vez por outra, a Choquei deixa de disseminar amenidades e usa o seu canhão a favor de uma pessoa ou contra ela. Para amplificar o efeito, é comum que outros perfis, que podem ser do mesmo dono, da mesma empresa ou de amigos, repercutam o assunto ao mesmo tempo, ludibriando os algoritmos das redes e amplificando o alcance da mensagem. Não raro, veículos desavisados da mídia embarcam na história.

É possível manipular o contexto que a gente vive, criando socialmente falsos consensos e falsos dissensos. Às vezes, a gente vê a mídia inteira falando contra um humorista. Mas aí outro humorista, que é da patota, faz a mesma coisa e ninguém fala nada. A gente acha estranho”, diz a jornalista Madeleine Lacsko, autora do livro Cancelando o cancelamento e apresentadora do Narrativas, em O Antagonista.

Consensos e dissensos são criados de maneira artificial, a partir da coordenação de diferentes perfis, sendo que quase todos não trazem nomes e fotos de pessoas e foram criados exatamente com o fim de manipular o debate público nas redes. “Quando isso é feito de maneira concertada, concatenada, dá impressão, primeiro, de que aquele assunto é muito importante e, depois, que existe um consenso em torno daquilo. Essa leitura errada invariavelmente vai parar na imprensa”, diz Madeleine. “Eles podem levar qualquer um para o céu ou para o inferno.”

 

 

O suicídio da estudante Jéssica e o viés claramente de esquerda da Choquei levaram parlamentares a pedir uma investigação sobre o financiamento do perfil e das agências responsáveis por ele. O ponto central é saber se o governo petista está se beneficiando dessa estratégia para ganhar apoio popular. Na Assembleia Legislativa de São Paulo, o deputado estadual Guto Zacarias, do União, pediu ao Ministério Público Federal instaure um inquérito civil para apurar se a Choquei recebe dinheiro do governo federal. Outro alvo é a agência Mynd8, que ajudou a criar a empresa Banca Digital, a qual teve a Choquei como um de seus perfis. Em Brasília, o deputado federal Daniel Freitas, do PL, pediu as quebras de sigilo bancário e telemático da agência Mynd8 para apurar possível vínculo com a Choquei.

Há ainda um pedido de CPI encabeçado por deputados da base de oposição ao governo Lula. Os parlamentares pretendem reunir 171 assinaturas até o final do recesso legislativo. Conforme parlamentares ouvidos por Crusoé, essa CPI teria um potencial explosivo ao governo Lula.

Para além de investigar os braços da Mynd8 e Choquei com o governo Lula, deputados, senadores e ex-integrantes da campanha de Jair Bolsonaro suspeitam que a campanha petista foi beneficiada por um novo esquema de Caixa 2 eleitoral. Tudo via Choquei. Integrantes do que foi a coordenação da campanha de Jair Bolsonaro identificaram um movimento orquestrado adotado pela Choquei e pela agência Mynd8, em que um perfil ligado à agência publica uma informação, que depois é compartilhada pela Choquei e ganha uma dimensão maior do que o normal. A suspeita deles é que influenciadores digitais da Myn8 tenham sido pagos pela agência durante a campanha eleitoral para fazer propaganda disfarçada durante o pleito. O perfil Choquei, nesse processo, travestido de veículo de imprensa, daria o tom “noticioso” a cada informação depreciativa sobre o então candidato Jair Bolsonaro. Essas ligações ficaram mais suspeitas depois que deputados descobriram que a Empresa Brasileira de Comunicação, EBC, contratou o influenciador Murilo Ribeiro Pereira (conhecido como “Muka”) para trabalhar na estatal com um salário nada modesto de 17,8 mil reais ao mês. Muka é amigo de Janja e é agenciado pela Mynd8.

Também é sabido que a Choquei, criada pelo fotógrafo Raphael Sousa, integrou o cardápio de perfis da firma Banca Digital, do empresário Murilo Henare, em 2019. A ideia de Henare era unir vários perfis de humor, como Alfinetei e Miga sua Louca, em um único pacote, para vender publicidade de maneira eficiente e coordenada. Um único anunciante, pagando um valor fixo, poderia espalhar sua mensagem em várias contas, ganhando um alcance maior. O projeto foi encampado pela agência Mynd8, que já administrava vários perfis. A Banca Digital, contudo, afirma ter cortado os laços com a Choquei em janeiro de 2020 e não ter mais relações com o perfil de fofocas.

Após o suicídio de Jéssica, a Mynd8 foi alvo de críticas e publicou uma nota no site da empresa. “Cuidamos exclusivamente da intermediação de venda de publicidade em perfis nas redes sociais e não participamos em nenhum momento da definição do conteúdo pessoal postado nos perfis dos criadores que atendemos”, diz o texto da Mynd8. “Jamais orquestramos postagens em conjunto de nenhuma forma ou criamos estratégias de cunho político para nenhum campo ideológico a não ser a divulgação de ações publicitárias contratadas pelas empresas que atendemos e ativadas pelas pessoas que agenciamos.”

A preocupação com o uso coordenado de perfis em questões políticas tende a crescer com a proximidade das eleições municipais este ano. A mistura de influenciadores e política em um país como o Brasil tem tudo para ser explosiva. “O Brasil é o país em que as pessoas mais consomem baseados em influenciadores, e onde os influenciadores ganham mais dinheiro”, diz Davis Alves, doutor em tecnologia e especialista em privacidade de dados. “Somos um país muito influenciável, onde um veículo que cancelou uma pessoa hoje pode muito bem cancelar um político amanhã.”

No universo publicitário, influenciadores digitais estão sujeitos a normas específicas quando divulgam conteúdos patrocinados. O Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) orienta, por meio de um manual, que esses posts sejam claramente identificados como anúncios, detalhando a relação com as marcas patrocinadoras em nome da transparência. É recomendável que, após recomendações de produtos, sejam inseridas hashtags como #publicidade, #anúncio, #patrocinado ou #conteúdopago.

Contudo, a aderência a essas diretrizes nem sempre ocorre, pois muitos influenciadores desprezam ou ignoram o guia do Conar. A fragmentação do mercado só piora as coisas. Microinfluenciadores pouco conhecidos possuem grande poder de persuasão e se oferecem em busca de remuneração por publicidade. “Como são mais próximos do público, esses pequenos influenciadores podem exercer uma influência ainda mais significativa que aqueles que são famosos”, diz Larissa DeLucca, advogada especializada em direito das novas tecnologias. Além de tentar conscientizar sobre as diretrizes, o Conar analisa as denúncias que são feitas, uma vez que o universo das postagens é infinito.

Na política, esse trabalho de fiscalização cabe à Justiça eleitoral. Ainda que muita expectativa tenha sido criada em torno do Projeto de Lei das Fake News, o PL 2630, a discussão não tem incluído a promoção cruzada usando vários perfis. Tanto que o projeto tem recebido o apoio de influenciadores e das agências que administram os perfis que fazem ações coordenadas. “O projeto de regulamentação aqui no Brasil não foca na arquitetura da rede ou na legalidade dos algoritmos. Ele foca basicamente no conteúdo da postagem do cidadão e na responsabilização das plataformas por isso. No caso da Choquei, nada do que está no PL das Fake News mudaria alguma coisa”, diz Madeleine Lacsko (abaixo).

 

 

A questão central no PL das Fake News é obrigar as plataformas de redes sociais a monitorar o conteúdo publicado pelos usuários, para impedir que mensagens enganosas ou perigosas sejam publicadas e viralizem. Caso as empresas não façam o dever de casa, elas seriam punidas e multadas.  O problema aí é que não há como definir se um conteúdo é verdadeiro ou falso sem deixar que os vieses ideológicos interfiram. Quando membros do governo petista atacaram publicações na internet, frequentemente era porque seus autores estavam do lado oposto do espectro político, na direita. No caso do uso de perfis coordenados, tratado nesta reportagem, o que está em jogo não é o conteúdo publicado, se ele é verdadeiro ou falso, e sim a estrutura montada para favorecer algumas ideias e pessoas em detrimento de outras, e que poderia estar a serviço de alguém.

Em eleições anteriores, o Brasil já teve problemas com páginas do Facebook, com blogs e blogueiros, com grupos de WhatsApp e com tuiteiros pagos secretamente. Agora, a preocupação é com os perfis famosos ou redes de perfis famosos, no X/Twitter e no Instagram“, diz Magno Karl, diretor-executivo do Livres. “A fiscalização será um grande desafio, uma vez que é muito complicado verificar a sinceridade do engajamento político de um influenciador, se ele diz as coisas por convicção ou por dinheiro. Também não será fácil dizer se um perfil de uma rede social noticia fatos com uma determinada visão política ou se faz apenas propaganda disfarçada para algum candidato.”

Se a atuação coordenada dos perfis já existe e parecer ser um caminho sem volta, então que pelo menos a população possa pedir um pouco de transparência sobre quem paga a conta deles.

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  1. O mundo piora a cada dia, imagina nosso Brasil que já não era bom. Nosso povo não tem complexo de "vira latas", somos o próprio. Se não fosse assim, não estaríamos no enésimo BBB.

  2. É um absurdo o tanto de indivíduos com deficiência de neurônios que participam desses perfis idiotas, propagadores de mentiras e fofocas, deturpando a verdade e criando absurdos sobre pessoas e entidades. Como citado em comentário de outro leitor pode-se medir a ignorância pelo apoio aos terroristas do Hamas por esse mundo afora.

  3. Ver o rosto de uma menina tão bonita e q abriu mão de sua vida, aflita com o ataque virtual q estava sofrendo... é de cortar o coração!.A sordidez destes perfis de fofoca com tantos inscritos também é difícil de assistir!!!

  4. É um bando de aproveitadores de um público de QI de pomba rola. Quando se fala que a maioria dos brasileiros é analfabeto funcional esse escândalo só confirma. Mas, sejamos juntos, o mundo está nessa também, basta olhar a quantidade de apoiadores do Hamas que se espalham por todos os cantos do Planeta.

  5. Aproveitando este espaço, como está difícil navegar pelas colunas da Crusoé e do Antagonista. Sugiro dar uma pirueta e voltar aos velhos tempos....

    1. Eu diria que está impossível navegar no site Crusoé para ler as notícias o Antagonista não dá +, é tanta publicidade pulando na tela. Sou assinante desde a criação mas vou repensar em manter.

  6. O governo federal precisa especialistas com competência profissional para fiscalizar as empresas influenciadoras e divilgadoras digitais, punindo as que atuam irresponsavelmente, sem ética, sem auto controle, sem regras.

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