Acervo MAM RioPintura em tina automotiva de Lygia Clark, do MAM do Rio

A defesa contra o caos

O abstracionismo geométrico na arte e o planejamento urbano foram formas de os brasileiros lidarem com as forças da natureza e da psique
12.01.24

Mário Pedrosa escreveu que os críticos de arte estrangeiros quando vinham para o Brasil (este país longínquo) traziam consigo algumas opiniões dogmáticas sobre a arte brasileira. Chegavam procurando os papagaios, as cores berrantes, os índios, as florestas, as narrativas pitorescas. “Se encontram, aprovam, satisfeitos; se não encontram, não conseguem esconder o despeito”, diz ele num texto no Jornal do Brasil de 1959, compilado no livro Acadêmicos e Modernos (Editora Edusp).

Até que surgiu um crítico, um certo senhor Jorge Lampe, do jornal Die Presse de Viena, que conseguiu observar um paradoxo fundamental da arte moderna brasileira. Ele observou que predominava o chamado abstracionismo geométrico. Referia-se a obras de Portinari, Di Cavalcanti, Volpi, Serpa, Dacosta, Décio Vieira, Lygia Clark.

Jorge Lampe se pergunta: “Como pode tal tendência crescer a ponto de dominar a produção artística de um povo que vive num meio subtropical, no qual a natureza ameaça?”. E ele mesmo responde: “A não ser que tenha sido precisamente como reação ou defesa contra esta circunstância ameaçadora, e contra o caos barulhento”.

Mário Pedrosa conclui sobre o comentário de Lampe: “Eis aí uma intuição realmente luminosa”. E mais: “O crítico atinge em cheio o que há de mais enigmático e também de mais original, de mais especificamente brasileiro, de mais vernáculo, na produção artística e cultural do país”. E ainda faz um paralelo com a arquitetura moderna brasileira, que também tem uma profunda coesão e pode ser relacionada ao abstracionismo geométrico, e já era consagrada àquela altura.

Os relatos sobre o caos nas terras que viriam a formar o Brasil remontam à colonização. O caos estava na natureza inexplorada, nas plantas e animais exuberantes e desconhecidos, nos hábitos dos nativos. Laura de Mello e Souza no livro O Diabo e a Terra de Santa Cruz cita um viajante chamado Buffon, que afirmava no século 17: “Vejamos então por que existem répteis tão grandes, insetos tão gordos, quadrúpedes tão pequenos, e homens tão frios nesse novo mundo. O motivo é a qualidade da terra, a condição do céu, o grau de calor e umidade, a situação e elevação das montanhas, a quantidade das águas correntes ou paradas, a extensão das florestas, e sobretudo o estado bruto em que a natureza se encontra“.

E ela própria afirma no livro: “Os habitantes das terras longínquas que os europeus acreditavam serem fantásticas constituíam uma outra humanidade, fantástica também, e monstruosa”.

Uma das formas da defesa contra o caos é o planejamento urbano. Também ele geométrico. Diz Antonio Risério no livro A Cidade no Brasil: “A Cidade da Bahia, fruto do geometrismo do urbanismo colonial lusitano, foi de fato concebida no âmbito maior do pensamento renascentista, sob o signo da Antiguidade greco-romana encarnada na figura de Vitrúvio. É nítida a disposição geométrica da planta da cidade-fortaleza. A vontade de racionalidade. A intenção simétrica”.

Tal geometrismo no projeto urbano chega ao ápice na construção de Brasília. A nova capital, apesar da sua originalidade, é na verdade o ponto culminante das cidades planejadas brasileiras, em que estão inseridas Mariana, Teresina, Belo Horizonte e Goiânia, como bem ressalta Risério no livro já citado.

O abstracionismo geométrico tem também um sentido psicológico. O cineasta Leon Hirszmann realizou uma trilogia de documentários chamada Imagens do Inconsciente, baseado no trabalho da psiquiatra Nise da Silveira.

O primeiro, Em busca do espaço cotidiano, trata de Fernando Diniz, paciente do hospital psiquiátrico, cuja obra chamou atenção pela complexidade e pelo apuro, chegando a ser expostas em galerias de arte. Nise interpreta as imagens à luz das forças autocurativas da psique que tentam organizar o caos emergido do inconsciente. Nas obras de Fernando Diniz, o geometrismo expressa a necessidade de reorganização da psique. Diz a narração do filme: “Ele recorre a geometrismos para apaziguar tumultos emocionais buscando refúgio em construções estáveis. Note-se também que o geometrismo de Fernando não tem a rigidez característica das figuras geométricas construídas por outros autores. É quase sempre um geometrismo impregnado de dinamismo, do tipo do geometrismo sensível, quente, descritos por alguns críticos de arte moderna”.

 

Josias Teófilo é cineasta, jornalista e escritor

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  1. É muito interessante o trabalho da psiquiatra Nise da Silveira. tive oportunidade de conhecer obras criadas pelos seus pacientes. E é incrível de ver a competência desse pessoal que simplesmente não teve as mesmas oportunidades que um Portinari, por exemplo.

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