Agência SenadoLula na rampa do Palácio do Planalto: pluralidade

O Brasil em 2023: avanços e retrocessos

O país conheceu alguma estabilidade na sua política externa. Mesmo assim, padrões do lulopetismo se mantiveram cristalinos no primeiro ano do Lula 3
22.12.23

O ano começou sob os melhores auspícios: uma festa de posse com diversidade social, assistida e saudada por número apreciável de convidados estrangeiros e de milhares de entusiastas na Praça dos Três Poderes. O Itamaraty comprovou sua expertise nessas grandes recepções e tudo parecia augurar uma saudável inversão de tendências e posturas depois de quatro anos de rebaixamento internacional, tensão golpista pairando no ar de Brasília e uma pesada herança fiscal, fruto do populismo econômico praticado expressamente por razões eleitorais. Nada empanava o início de um ano que se anunciava tão triunfal quanto o slogan escolhido naquele momento: “O Brasil voltou!”

Algumas políticas teimavam, porém, numa insistente continuidade com o governo recém-findo: a teimosia em dividir o país entre “nós” – os que aderiram ao líder carismático em seu terceiro mandato – e “eles”, os bolsonaristas, e todos os derrotados de outubro; uma chocante atitude objetivamente favorável ao ditador agressor da Ucrânia, a despeito da neutralidade formal proclamada na ONU; a mesma propensão ao gasto público infinito, apesar das promessas de reforma tributária e de despesas orçamentárias controladas. O ano avançou e as contrariedades começaram a se acumular na agenda interna e na externa.
A política doméstica começou a refletir exatamente o que outubro havia reservado em termos de maioria congressual. A exiguidade de votos consolidou uma mudança já antevista desde o governo anterior: seria o Legislativo a determinar o que seria ou não seria aprovado, e o Executivo teve de se conformar ao novo parlamentarismo informal. O preço, prolongado ao longo do ano, foi a cessão de cargos ministeriais e a continuidade do estupro orçamentário sob a forma de emendas impositivas em volume e valores crescentes. Sem qualquer pudor ou contenção, os congressistas passaram a determinar o que eles precisariam receber em troca dos projetos de lei que o Executivo buscava fazer aprovar.

Na política externa, o brilho da antecipada liderança do Sul Global começou a ser empanado justamente em função da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, para cuja solução o presidente chegou até a sugerir cessão de território por parte da nação agredida. A recepção dessas ideias no G7 de Hiroshima foi a pior possível e um esperado encontro com o presidente Zelensky foi sorrateiramente evitado. Os resultados de duas reuniões regionais sul-americanas, ainda no primeiro semestre, fugiram completamente ao projetado inicialmente: nem o retorno da Unasul, nem as promessas de redução da devastação florestal amazônica ou a prometida transição energética figuraram nas declarações finais das cúpulas integracionista e amazônica. Lula recebeu objeções dos próprios presidentes de esquerda, em especial devido ao fato de ter recebido o estimado ditador venezuelano com honras de visita de Estado.

Ainda na frente externa, uma outra cúpula, a dos companheiros e aliados do Brics em Joanesburgo, terminou com um “bolinho da sorte chinês”: a ampliação a 120% dos membros, com seis novos países admitidos, todos eles do clube dos autoritários e antiocidentais, com exceção da Argentina, que acabou por rechaçar o convite de adesão desde a eleição do novo mandatário em novembro. O curioso é que, com a Índia, o Brasil afirmava que primeiro era necessário “definir os critérios de adesão” antes de acolher novos membros, ao passo que o chanceler oficioso se pronunciou em favor da adesão sem qualquer critério explícito. A agenda apresentada para a presidência do Brasil no Conselho de Segurança da ONU, no mês de outubro tinha começado com todo o otimismo das causas sociais e da “reforma da governança global” para logo se chocar com a barbárie dos ataques terroristas do Hamas contra a população civil de Israel, sem que Lula e o PT fizessem, no início, qualquer alusão aos perpetradores das atrocidades, como se tudo fosse reação palestina à opressão do Estado de Israel. Pouco adiante, em face das reações dos aliados de Israel, Lula concedeu em identificar o agressor primeiro, designando os seus atos como terroristas, mas passando a condenar Israel como “genocida” de mulheres e crianças palestinas.

A postura do governo em relação ao drama terrível seguiu o mesmo padrão adotado no caso da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia: equiparar agressor e agredido, como se Putin não tivesse violado deliberadamente a Carta da ONU e as normas mais elementares do Direito Internacional, ou como se o Hamas representasse a legítima resposta do povo palestino contra o “apartheid israelense”. A mesma atitude prevaleceu no novo foco de tensão criado pela Venezuela contra a vizinha Guiana, recomendando “bom senso” aos dois lados, como se eles fossem equivalentes na solução dos problemas legados pelas antigas potências coloniais na região. Trata-se de um padrão costumeiro do lulopetismo: os aliados ideológicos podem atentar contra os direitos humanos, o que não é permitido aos ocidentais.

Na última reunião internacional do ano, a COP-28, Lula conseguiu ser reiteradamente contraditório: aceitou o convite para ser um associado na Opep+ ao mesmo tempo em que preconizava a transição energética para combustíveis renováveis. Confrontado, finalmente, à esperada oposição da França ao acordo com a União Europeia, conformou-se ao fracasso de vinte anos de negociações – em parte provocadas pelo projeto americano da Alca, implodida por ele com a ajuda dos amigos Chávez e Kirchner – para retomar um aparente interesse, ao visitar o socialdemocrata Olaf Scholz, da Alemanha, a principal interessada na associação. Na verdade, não só os agricultores franceses tinham enormes restrições à abertura dos mercados aos competitivos produtores do Mercosul, mas outros protecionistas europeus também, sobretudo no setor das carnes; os próprios brasileiros e argentinos mantinham seu tradicional protecionismo industrial e Lula externou diversas vezes sua objeção à abertura das compras governamentais.

Entre avanços e retrocessos, o Brasil conheceu alguma estabilidade: na mediocridade do ensino, por exemplo, como refletido nos testes do Pisa– programa de avaliação de jovens do ciclo médio, organizado pela OCDE e cobrindo seis dezenas de países – nos quais os estudantes brasileiros ficam sistematicamente nos últimos lugares, em matemáticas e ciências elementares e língua pátria, desde o início de nossa participação no exercício. Uma outra estabilidade das menos desejáveis situou-se num cenário bem conhecido desde a década perdida dos anos 1980: as taxas muito modestas de crescimento, numa estagnação de meio século, apenas moderadamente mais vigorosas na primeira década deste século, puxadas pela extraordinária demanda chinesa por nossos produtos de exportação.

Outro tipo de retrocesso ocorreu na política externa. Depois da alegada autonomia pelo distanciamento da era militar, o país experimentou a chamada autonomia pela integração ao abrir-se relativamente ao mundo na redemocratização; um breve intervalo de submissão com desintegração seguiu-se no modelo “pária” antimultilateralista de Bolsonaro. Qualquer política externa mais ou menos normal depois disso seria saudada dentro em fora do país. O que se observou, no entanto, foi um ativismo seletivo caracterizado pela divisão do mundo entre um Ocidente supostamente declinante e um inexistente Sul global, por acaso incluindo duas grandes autocracias interessadas numa “nova ordem global” antiocidental.

Lula escolheu ser contraditório em várias frentes: uma reforma tributária que trará novo aumento da carga fiscal, uma duvidosa liderança ambiental associada a um cartel de produtores de petróleo, o entusiasta da transição energética quando o Brasil continua sendo um dos maiores responsáveis pelo aquecimento global, um defensor da democracia contra autoritários de direita, mas que apoia ditaduras de esquerda, enfim, a mesma metamorfose ambulante bem conhecida desde os anos 1980. Nos avanços, o golpismo foi vencido, embora a divisão do país tenha persistido. Nos retrocessos, o estatismo de retorno e uma diplomacia abertamente revisionista da atual ordem internacional. Finalmente, numa síntese sobre o ano de 2023 na frente externa, o chanceler, em discurso na CREDN-CD, conseguiu realizar a proeza de “esquecer” completamente da Ucrânia, inclusive do encontro Lula-Zelensky em Nova York, por ocasião da Assembleia Geral da ONU. Um “esquecimento” sintomático…

 

Paulo Roberto de Almeida é diplomata, professor e escritor

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