Técnicos da Defesa Civil de Maceió observam efeitos do afundamento do soloDesastre em câmera lenta: técnicos da Defesa Civil de Maceió observam efeitos do afundamento do solo - Foto: Jonathan Lins / Prefeitura de Maceió

O Brasil afunda

Desastre ambiental em Maceió evidencia efeitos da impunidade e de falhas de fiscalização
08.12.23

O afundamento de cinco bairros de Maceió, capital de Alagoas, devido à extração de sal-gema pela petroquímica Braskem, é uma tragédia que se desenrola em câmera lenta. Nisso, ela difere dos desastres de Mariana (MG) e Brumadinho (MG), que deixaram seus rastros de devastação em poucos instantes. Também há diferença no fato de que em Maceió não há mortes, a despeito dos quase 60 mil desalojados, enquanto os dois incidentes com barragens de mineração causaram 19 e 270 vítimas, respectivamente. Ainda assim, todos os casos pertencem à mesma família. De um lado, há grandes empresas que cavam o solo e menosprezam os riscos de sua atividade. De outro, agências reguladoras e órgãos de fiscalização, no mínimo, negligentes. Os políticos, por sua vez, chegam tarde, mais preocupados em se eximir de qualquer responsabilidade.

Em 29 de novembro, a prefeitura de Maceió decretou estado de emergência em toda a cidade. Dois dias mais tarde, a Defesa Civil de Alagoas divulgou um novo mapa das áreas que sofrem risco de colapso. Algumas tiveram seu nível de alerta aumentado e outras, adjacentes, passaram a ser monitoradas. Mutange, Bebedouro e Pinheiro já haviam se tornado, no todo ou em parte, bairros fantasma. Agora, habitantes de Bom Parto foram orientados a deixar suas casas e moradores de Farol podem ter o mesmo destino. Isso acontece porque o solo ao redor de um dos pontos de mineração da Braskem, localizado num antigo campo do CSA, o time de futebol mais popular de Alagoas, começou a afundar de maneira acelerada. Na última quarta-feira, 5, o ritmo era de 27 milímetros por hora, ou 6,2 centímetros a cada 24 horas. As consequências de um desabamento são imprevisíveis. Podem ficar restritas às imediações ou se espalhar por áreas vizinhas, num efeito em cadeia.

A calamidade provocada pela mineração em Maceió começou a se tornar evidente em fevereiro de 2018, depois de alguns dias de chuvas intensas. Os moradores de Pinheiro, um bairro tradicional da cidade, observaram fissuras no chão e rachaduras nos prédios. No mês seguinte, um abalo sísmico de magnitude 2,4 foi sentido no local, causando a interdição de ruas e casas. Os bairros de Mutange e Bebedouro também relataram danos e um inquérito civil foi aberto pelo Ministério Público para apurar as causas do tremor de terra e monitorar a situação. Em maio de 2019, um estudo realizado pelo Serviço Geológico do Brasil (SGB) ficou pronto e confirmou as suspeitas: a extração de sal-gema de 35 poços na região da Lagoa Mundaú “interferiu diretamente na trama estrutural” do subsolo, causando a “subsidência” (ou afundamento) da superfície, com risco real de colapso.

O sal-gema, que tem diversas utilizações na petroquímica, é extraído com a perfuração de poços, a uma profundidade de cerca de 1.200 metros. A injeção de líquidos em alta pressão nesses dutos faz com que a substância venha à tona. Com o tempo, vão se formando imensas cavidades no subterrâneo. Essa  atividade começou em Maceió quase meio século atrás, em 1976. A empresa responsável era a Salgema S/A, que tinha como seus principais acionistas a Petroquisa, uma subsidiária da Petrobras, e a multinacional DuPont, além de algum capital do BNDES (então chamado de BNDE). A aquisição das minas pela Braskem aconteceu em 2002. Dez dos 35 poços foram perfurados depois disso, mas apenas 4 estavam sendo explorados em 2018, quando o chão na superfície começou a ceder. A empresa foi obrigada a fechá-los em seguida.

A intervenção do Ministério Público – inicialmente o estadual, em seguida o federal – e as provas incontestáveis de que a mineração era a causa do afundamento de um pedaço da capital alagoana levaram a Braskem a assinar dois acordos de reparação, um para os cidadãos afetados, outro para os danos urbanísticos e ambientais. No primeiro caso, R$ 3,87 bilhões já foram pagos em indenizações e auxílios financeiros, relativos a 17.908 imóveis residenciais e 5.597 imóveis comerciais. No segundo caso, a empresa terá de destinar R$ 1,4 bilhão a Maceió, em ressarcimento pelos danos à cidade e ao meio ambiente, além de assumir obrigações de monitoramento permanente das áreas em risco.

As investigações do MPF também revelaram que a Agência Nacional de Mineração, ANM, e o Instituto do Meio Ambiente de Alagoas, IMA, deixaram de cumprir suas tarefas de fiscalização das operações da Braskem. As quatro procuradoras do grupo de trabalho atuante no caso descobriram que a Braskem e as empresas que a antecederam jamais produziram um Estudo de Impacto Ambiental, EIA, que passou a ser obrigatório em 1986 para atividades de mineração. Nesse ano foi elaborado apenas um relatório mais simples, que ironicamente assegurava não haver “qualquer preocupação ambiental com a presença das cavidades subterrâneas, uma vez que haverá apenas a substituição das camadas de sal por água. Suas dimensões são totalmente controladas e previamente determinadas, e estão cobertas por camadas consolidadas de folhelhos e calcários”.

A ausência do EIA, ao longo de quase quatro décadas, deveria ter impedido que a Braskem obtivesse licenças do órgão de fiscalização estadual, mas isso jamais aconteceu. As últimas licenças foram expedidas em 2016, dois anos antes de o chão começar a desabar em Maceió. Incluíam até mesmo autorização para a abertura de três novas minas. A ANM também deixou passar em branco a inexistência do estudo e sequer a mencionava em suas vistorias. Segundo o MPF, as circunstâncias evidenciam “a gravidade e a precariedade das condições de licenciamento relacionadas à extração de sal-gema pela Braskem em Maceió”.

Protesto contra a Braskem no bairro de Mutange, em MaceióProtesto contra a Braskem no bairro de Mutange, em MaceióNo bairro de Mutange, o protesto de famílias que foram desalojadas – Foto: Gésio Passos/Agência Brasil
 

Há dois caminhos para o caso a partir de agora. Em março deste ano, a Polícia Federal ganhou uma nova superintendente em Alagoas. A delegada Luciana Barbosa pôs a investigação no topo de suas prioridades e convocou um time de peritos, entre os quais geólogos, para fazer avançar o inquérito. Dependendo das conclusões, podem ser abertas ações penais – inclusive de improbidade, contra autoridades públicas.

Além disso, há uma CPI engatilhada em Brasília, por iniciativa do senador Renan Calheiros, do MDB de Alagoas. É possível que a comissão seja instalada na próxima semana, mas os trabalhos só devem ter início em 2024. O relator seria o próprio Renan e a presidência ficaria com Omar Aziz (PSD-AM), reeditando uma dobradinha da CPI da Covid.

Até o momento, além de Renan e Aziz, foram indicados como membros titulares Efraim Filho (União-PB), Cid Gomes (PDT-CE), Jorge Kajuru (PSB-GO), Eduardo Gomes (PL-TO) e Wellington Fagundes (PL-MT). Mas a base governista resiste em fazer indicações. O líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), orientou seu partido a adiar ao máximo as escolhas, para impedir que qualquer passo seja dado antes do final do ano.

Um dos receios do Planalto é que a CPI desencadeie uma guerra entre os dois alagoanos mais poderosos do Congresso, Renan e o presidente da Câmara Arthur Lira (PP-AL), que são desafetos políticos. Renan dá sinais de querer utilizar a CPI para desgastar o prefeito de Maceió, João Henrique Caldas, apadrinhado por Lira. Seu plano é chamar atenção para a compra de um hospital pela prefeitura, por R$ 266 milhões. Isso permitiria puxar o fio de uma outra meada: o uso de recursos de emendas parlamentares no sistema de saúde de Maceió.

Lira já deixou claro que espera colaboração do governo para manter o foco das investigações na Braskem. Seus aliados avisaram o Palácio do Planalto que a falta de empenho em ajudar o presidente da Câmara vai respingar na articulação política do governo. O ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, entrou em campo para negociar um armistício entre os alagoanos. O problema é que uma CPI inteiramente focada na Braskem deixa os petistas desconfortáveis. Afinal de contas, a empresa é o braço petroquímico da Odebrecht, que hoje atende pelo nome de Novonor, e tem a Petrobras como sua segunda maior acionista. A oposição não vai perder a oportunidade de relembrar o petrolão e fustigar o PT.

Como lembrou O Antagonista nesta semana, o executivo José Carlos Grubisich, que chefiou a Braskem de 2002 a 2008, foi preso em novembro de 2019, acusado por autoridades americanas de lavagem de dinheiro e de violação de uma lei de corrupção dos Estados Unidos. Em abril de 2020, ele passou a responder em liberdade, depois de pagar fiança de 30 milhões de dólares. Um ano depois, em abril de 2021, Grubisich confessou participação em esquema de suborno que também envolvia a Odebrecht. Em outubro daquele ano, ele foi condenado a 20 meses de prisão pelo juiz Raymond Dearie, de Nova York. Segundo as investigações da Lava Jato, Grubisich comandou uma conta da Braskem com 250 milhões de dólares usados para pagar propina a políticos brasileiros.

A CPI da Braskem também pode dificultar a venda da participação da Novonor na empresa, um movimento ensaiado há meses. Atualmente, há uma proposta na mesa: a Adnoc, dos Emirados Árabes, ofereceu R$ 10,5 bilhões pela totalidade das ações da Novonor. A Petrobras, no entanto, tem preferência no negócio. Pode assumir a posição integralmente ou em parceria. Se em 2020 o então presidente da petroleira, Roberto Castello Branco, defendia a saída da estatal do negócio petroquímico em até 12 meses, o atual Plano Estratégico da petroleira fala em ampliar sua presença no setor. Lula, tão estatizante quanto sempre foi, gosta da ideia.

Tudo isso indica que o desastre ambiental de Maceió, que interferiu em milhares de vidas, é apenas um pretexto para a CPI: em Brasília os grupos políticos estão voltados, cada um, para os seus próprios interesses. Enquanto o país afunda.

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Correção: a versão original da reportagem atribuiu o valor de R$ 1,7 bilhão ao  acordo socioambiental entre Braskem e MPF. O texto foi corrigido.

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500
  1. POBRE POVO BRASILEIRO QUE, BHURRO E ILUDIDO, VOTA EM CANALHAS. CADA POVO TEM O POLÍTICO QUE MERECE. NO BRASIL O CRIME COMPENSA.

  2. Na briga entre Calheiros e Lira, eu torço pela briga. Aliás, está é minha torcida em qualquer atrito, só assim pra alguém revelar alguma coisa. Chega de acordões!

  3. Enquanto a licença ambiental estiver vigente, não há nada que a ANM possa fazer. Cabe ao órgão ambiental, e não à ANM, cobrar a existência do EIA para renovar (ou não) a licença ambiental.

  4. Belíssima reportagem. Os diversos pontos abordados dão aos leitores a oportunidade de entender a amplitude desse outro desastre, e gravar os nomes dos envolvidos.

  5. A rede de interesses é grande e complexa. No meio disso está a atide mineração, geradora de riqueza e fundamental pra melhora da qualidade de vida das pessoas. Que os responsáveis pela tragédia ambiental sejam identificados e punidos

  6. O Brasil afunda na negligência, na corrupção, na irresponsabilidade, no oportunismo, na delinquência que são práticas nas três esferas de poder. No fim Alagoas/Brasken é só mais um exemplo disso. Punição só para a população flagelada.

  7. Muito boa reportagem! Pena o conteúdo ser muito mau. Ainda me surpreendo com o nível estratosférico da corrupção no Brasil. No fim, não passo de uma ingênua.

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