Museu Paulista da USP/ReproduçãoDesembarque de Pedro Álvares Cabral em Porto Seguro, em quadro de Oscar Pereira da Silva (Imagem: Museu do Ipiranga)

Somos condenados ao moderno?

O Brasil nasceu oficialmente dentro da Idade Moderna, mas a cultura brasileira tem raízes antigas, que estão à mostra
23.11.23

Somos condenados ao moderno. É o que diz o crítico de arte Mário Pedrosa, numa sentença que foi reproduzida à exaustão. Virou nome de livro e de capítulo de livro, título de dissertação de mestrado, tese de doutorado, exposição, mostra etc. Existem algumas frases que tem a força de moldar o imaginário. É o caso desta frase, escrita no texto Brasília, Cidade Nova. Onde ele diz: “O nosso passado nos é fatal, pois nós o refazemos todos os dias. E bem pouco preside ele ao nosso destino. Somos, pela fatalidade mesma da nossa formação, condenados ao moderno. A nossa modernidade é tão radical que, coisa rara entre os estados, temos certidão de batismo: 22 de abril de 1500. Antes disso, simplesmente não existíamos.”

O Brasil já nasceu oficialmente dentro da modernidade, ou seja, na Idade Moderna, iniciada com a queda de Constantinopla, em 1453. E só tornou-se um país independente há duzentos e um anos.

Mas a cultura brasileira tem raízes antigas. A começar pelo componente essencial da cultura, a língua portuguesa. A língua portuguesa é uma língua neolatina, formada a partir do latim vulgar. Por isso foi chamada por Olavo Bilac de “a última flor do lácio, inculta e bela”.

A língua, por si só, nos conecta a um passado antigo. Escreve Fustel de Coulanges no livro A Cidade Antiga: “O contemporâneo de Cícero serve-se de uma língua cujas raízes são extremamente antigas; essa língua, exprimindo o pensamento de épocas passadas, foi modelada de acordo com esse modo de pensar, guardando o cunho que o mesmo transmitiu de século para século. O sentido íntimo de uma raiz pode às vezes revelar uma antiga opinião ou um antigo costume; as ideias transformaram-se, e os costumes desapareceram, mas ficaram as palavras, imutáveis testemunhas de crenças desaparecidas.”

A afirmação de Mario Pedrosa de que “bem pouco ele [o passado] governa a nossa existência” está errada já nisso. Ninguém cria a própria linguagem, não obstante ela estar sempre em mutação. A mudança, entretanto, não é total, uma vez que conseguimos hoje ler um livro de Machado de Assis. As possibilidades da língua, o vocabulário, tudo isso molda nossa experiência no mundo e a cultura. A língua traz consigo a experiência e as crenças do passado.

O Brasil foi colonizado já em plena modernidade, sim. A própria chegada dos portugueses ao território que hoje é o Brasil aconteceu por causa do avanço tecnológico nas navegações. Acontece que não existe, na prática, a ruptura que o consenso escolar atribui entre Idade Média e Idade Moderna. Diz Raymond Block no prefácio do livro A Civilização do Renascimento: “Renascimento pressupõe, pelo menos, um torpor ou sono prévios. Ora, é uma ilusão procurar uma ruptura clara na trama contínua do tempo”.

Basta dizer que tal avanço tecnológico, das navegações, deu-se no contexto de um imaginário povoado de monstros, demônios e “povos cujos costumes decaíram da natureza humana”, como fala Laura de Mello e Souza no livro O Diabo e a Terra de Santa Cruz. Era o imaginário simplesmente medieval. “Colombo pensava que, mais para o interior da terra que descobriria, depararia com homens de um só olho, e outros com focinhos de cachorro. Em 8 de janeiro de 1492, viu três sereias pularem fora do mar, decepcionando-se com seu rosto: não eram tão belas quanto pensara”, escreve ela.

A estrutura das cidades coloniais brasileiras, por exemplo (com exceção do projeto da cidade de Salvador feito pelos portugueses, e do Recife feito pelos holandeses), é a estrutura de uma cidade medieval – cidade que se amolda ao terreno “à maneira das contas de um colar”, como escreveu Murilo Marx.

Mas era preciso modernizar as cidades brasileiras: reformá-las no sentido da civilização, tendo como modelo o europeu. “Começou aí o processo de segregação socioespacial na vida das cidades brasileiras”, escreve Antonio Risério no livro A Cidade no Brasil. Derrubaram o antigo Morro do Castelo, no Rio de Janeiro. E a população que ali morava precisou engrossar as populações das favelas, ou criar outras favelas.

“No fim do século 19, o Rio possuía só uma favela. A opção pela modernização segregacionista deu no que deu. Hoje as favelas cariocas contam-se às dúzias”, diz ainda Risério. As favelas, sendo assentamentos urbanos informais, ocupam os morros, locais adversos e irregulares, tal como nas cidades coloniais. A modernização das cidades brasileiras viu a irrupção do espaço medieval.

Entre janeiro e março de 1904 foram publicados no jornal Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro as reportagens de um jovem jornalista, que adotou o pseudônimo de João do Rio. As reportagens foram intituladas As Religiões do Rio. Diz ele: “O Rio, como todas as cidades nestes tempos de irreverência, tem em cada rua um templo e em cada homem uma crença diversa”. E mais: “Nós dependemos do feitiço. Não é um paradoxo, é a verdade de uma observação longa e dolorosa. Há no Rio magos estranhos que conhecem a alquimia e os filtros encantados, como nas mágicas de teatro, há espíritos que incomodam as almas para fazer os maridos incorrigíveis voltarem ao tálamo conjugal, há bruxas que abalam o invisível só pelo prazer de ligar dois corpos apaixonados…”.

Tal descrição bem poderia se aplicar à Europa medieval, mas se refere a um Brasil pretensamente moderno, em pleno século 20.

 

Josias Teófilo é cineasta, jornalista, escritor e fotógrafo

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  1. Brasil é um país que nasceu moderno com uma economia que brotava agrária e assim se manteve durante séculos, além de fechada e escravagista. O povo nativo não era brasileiro, o que vinha não o queria ser, e o que foi chamado de brasileiro foi justamente o fruto indesejado dessa mistura. O mesmo se pode dizer da corruptela feita à língua portuguesa. E esse caos aplica-se ao estado, às cidades, ao desenvolvimento urbano, etc. Tudo é fruto do acaso ou consequência do erro. País fadado ao azar

  2. Acrescente à receita desse caldo que você descreveu os primeiros séculos de atuação dos 'brasileiros', i.e. aqueles que se ocupavam do negócio do pau brasil, do corte ao carregamento dos navios. Essa anomalia gramatical nos deu o nome de brasileiros, em plena modernidade, quando melhor e mais correto seria brasilianos ou brasilienses.

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