O Banco Central da ArgentinaBanco Central da Argentina: fadado à extinção? - Foto: Reprodução/ Wikimedia Commons

Sem Banco Central, sem moeda própria: a Argentina de Milei 

Os argentinos são um povo mentalmente dolarizado, mas isso não significa que seja simples trocar os pesos pela moeda americana
23.11.23

Donald Trump perdeu para Hillary Clinton no voto popular por 46,1% a 48,2%, mas ganhou no Colégio Eleitoral, que é o que vale, por 304 a 227. Durante a campanha, Trump disse, entre outras barbaridades, que o homem nada tinha a ver com o aquecimento global e que os imigrantes mexicanos eram estupradores.

Jair Bolsonaro precisou de um segundo turno para derrotar Fernando Haddad, mas o fez folgadamente: 55,13% a 44,87%. Tal como seu colega americano, afirmou, em meio a coisas sensatas (mais Brasil, menos Brasília; enxugamento da máquina estatal), que jamais houve golpe militar em 1964 e que o homossexualidade era um desvio de caráter.

Agora esse movimento, que poderíamos chamar de direita porra-louca, chegou na Argentina, quando Javier Milei bateu seu adversário peronista, Sergio Massa, também em segundo turno, por uma diferença de 11,4%, não deixando dúvidas sobre quem os eleitores queriam pôr na Casa Rosada.

Só que, comparados a Milei, Trump e Bolsonaro são dois conservadores moderados.

Para começar, Javier Milei diz que se aconselha mediunicamente com um cachorro (sim, um cachorro), Conan, que morreu em 2017.

Se eu desfilar aqui nesta crônica todas as sandices ditas por Milei, só haveria espaço para esse tema. Então vou me ater à mais importante delas: extinção do Banco Central e do peso, substituindo-o pelo dólar norte-americano.

Vejamos como isso se deu em outros países em diversas ocasiões.

Comecemos pela Alemanha em 1923. Quando um dólar chegou a ser cotado a 4.210.500.000.000 (quatro trilhões, duzentos e dez bilhões e quinhentos milhões de marcos) os cidadãos simplesmente passaram a ignorar a moeda local, cujas cédulas eram vistas jogadas nas sarjetas, e adotar a moeda americana como meio de pagamento.

Ou seja, não se tratava de nenhuma medida governamental mas sim de recurso a algo confiável.

Vinte e três anos mais tarde, em 1946, o fato se repetiu na Hungria pós Segunda Guerra, em proporções ainda mais abissais.

A inflação de julho daquele ano foi de 41,9 quatrilhões por cento.

Pois bem, nos dois casos acima, a dolarização da economia aconteceu por inevitabilidade e não por decisão dos governantes.

A alternativa era o escambo. Uma consulta médica ou dentária, por exemplo, podia ser paga com um frango ou leitãozinho de leite.

Mas há países que decidem extinguir suas moedas e substituí-las por dólar por conveniência.

O Panamá, por exemplo, usa a moeda americana por causa da receita do Canal. Motivo mais do que justificável, ainda mais agora que estão construindo uma segunda via aquática paralela, unindo o Atlântico e o Pacífico, e o dinheiro americano entra a rodo.

Os panamenhos deixam que o Federal Reserve Bank cuide de sua política monetária.

O Equador, que também dolarizou sua economia, fez isso depois que o governo não conseguiu pagar o serviço de sua dívida externa no valor de 98 milhões de dólares.

O meio circulante equatoriano é produto do que entra de exportações menos o que sai de importações.

Se pesquisarmos as exportações do país, veremos que as principais são petróleo (eles são membros da OPEP) e seus derivados, bananas e peixes.

Só que a principal não consta de nenhuma estatística governamental: cocaína.

Vale constatar, cinicamente, que o dólar produzido pelos cartéis equatorianos do narcotráfico é tão bom quanto o das inocentes bananas.

Nas Bahamas, país essencialmente turístico, um dólar local equivale a um dólar norte-americano.

Em Nassau, você pode comprar uma mercadoria de sete dólares locais pagando com uma nota de 10 dólares e receber o troco na moeda que escolher, entre as duas.

Já em Barbados, onde estive há pouco tempo, o câmbio é um por dois (dois dólares barbadianos em troca de um americano), sem variações, independentemente das políticas monetárias do FED.

Agora vem o exótico Milei afirmar que adotará o dólar como moeda, extinguindo o peso.

Antes de mais nada, é bom observar que ele, depois de eleito, disse que adotará a medida daqui a um ou dois anos.

Isso se o Congresso, no qual Milei tem “ampla minoria”, aprovar a medida.

Os argentinos já são um povo mentalmente dolarizado. Ninguém diz que seu carro vale vinte milhões de pesos e sim 20 mil dólares. Ninguém anuncia nos classificados dos jornais um apartamento por 200 milhões de pesos mas sim por 200 mil dólares.

Aliás, os hermanos, escaldados por “n” reformas monetárias que deram errado e alguns confiscos (como o corralito decretado pelo presidente Eduardo Duhalde e seu ministro da Economia Domingo Cavallo), guardam seus dólares em casa (nos cofres bancários, sempre há risco de serem lacrados pelo governo) ou, no caso dos mais ricos, em contas no exterior.

Se todos esses dólares entrassem em circulação, a dolarização até que tinha uma chance de dar certo. Só que não tem a menor possibilidade de acontecer.

É mais provável que a dolarização argentina aconteça na marra, tipo alemão de 1923 ou húngaro de 1946.

Desejo um ótimo fim de semana para os amigos leitores.

 

Ivan Sant’Anna é escritor e investidor

[email protected]

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  1. Mas a pergunta que precisa ser feita; é a seguinte. Qualé a medida ideal para solucionar o problema econômico Argentino?

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