ReproduçãoSão Paulo apagada; no início de novembro, a Enel levou uma semana para restabelecer totalmente a energia na cidade

Sob o signo da esculhambação

17.11.23

Vocês, minha querida meia dúzia de três ou quatro leitores,acompanharam as reportagens sobre Luciane Barbosa Farias na última semana, certo? É a mulher de Tio Patinhas, que tem esse apelido de personagem de Walt Disney, mas é o líder do Comando Vermelho no Amazonas. Ela mesma, Luciane, foi condenada a dez anos de prisão por lavagem de dinheiro, organização criminosa e associação para o tráfico, mas responde em liberdade — e, apesar desse currículo notável, conseguiu ser recebida em Brasília por dois secretários do Ministério da Justiça. O que me espanta não é ter acontecido: é não acontecer com mais frequência (minha consciência, que às vezes se disfarça de Compadre Washington, está aqui dizendo “claro que acontece! Sabe de nada, inocente!”).

O que essa história demonstra, mais uma vez, é que no Brasil a única coisa realmente organizada é o crime organizado: um dos traços mais distintivos do Bananão no chamado “concerto das nações” é sermos um país que vive sob o signo da esculhambação. Houve, aliás, quem reclamasse dos textos chamando Luciane de “a dama do tráfico”. Eu acho ótimo: dá um ar de bolero ou novela mexicana, tipo A Usurpadora, que harmoniza muito bem com a esculhambação.

Levar em conta o chamado axioma de O Bandido da Luz Vermelha (“quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha. Avacalha e se esculhamba”) dá toda uma nova perspectiva à vida e às coisas neste país. Por exemplo: o apagão recente em São Paulo, no qual a Enel levou uma semana para restabelecer a energia de todas as casas depois de um temporal, não é incompetência nem incapacidade de cumprir o contrato de concessão: é apenas a companhia comprovando sua brasilidade ao se aclimatar à esculhambação generalizada (se bem que a Enel é italiana, e a Itália é uma espécie de Brasil da Europa nesse quesito scugliambazione; só dá certo por acaso ou milagre, ou talvez ambos).

Outro exemplo: o discurso de Marcio Pochmann, o brilhante presidente do IBGE na gestão Lula, dizendo que “hoje, aparentemente, o mundo volta a uma certa normalidade que existia antes de 1500”. O normal em outros países seria exigir exame toxicológico e/ou psicotécnico de quem diz a sério esse tipo de coisa, mas aqui o chefe do principal instituto de estatísticas fala e nada acontece, feijoada. De novo: esculhambação. Torço, sem muita esperança, para que ele não seja coerente a ponto de obrigar os estatísticos a fazer contas com um ábaco (mais provável é que adote métodos chineses de divulgação e dibres estatísticos).

Que diferença dos franceses, que diante de qualquer coisinha largam a baguete que carregam sob o sovaco, o vinho que seguram na outra mão, arremessam a boina longe e vão para a rua queimar alguns carros. Aqui a gente solta a vinheta da Globo (Brasil-sil-sil), às vezes junto com o Tema da Vitória, e deixa para lá, que o país é assim mesmo — e ainda bem, porque quando não deixa acontecem coisas como aquela horda de imbecis invadindo Brasília no 8 de janeiro. Eu sinceramente não sei se é pior ficar nesse eterno looping de esculhambação ou sair dele: talvez a única solução seja, como escreveu Camus, imaginar Sísifo feliz.

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A GOIABICE DA SEMANA

O troféu desta semana tem que ir para a primeira-blogueira Janja (foto). Em um evento recente no Planalto, cujo tema era igualdade de gênero, a sra. Lula criticou o machismo e a misoginia — mas, na hora de comentar as substituições de mulheres do alto escalão do governo do marido por homens indicados pelo Centrão, mandou um clássico VEJA BEM: “A gente às vezes acha que está difícil, que poderia ter sido feito isso ou aquilo outro, mas a política é bem complexa, às vezes nos obriga a algumas coisas”. Como disse uma querida amiga, o Centrão é complexo, mas o Oriente Médio e a guerra na Ucrânia são simples: uma cerveja no bar resolve. E, para a surpresa de ninguém, a exclusão de mulheres dos espaços de poder agora é tratada como realpolitik. É exclusão, mas é do bem.

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AVISO DE FÉRIAS

Pois é, vocês vão ficar livres de mim por um par de semanas — mas, como tudo que é bom dura pouco, volto logo. Não me mandem notícias. Grata, a gerência.

 

Foto: Cláudio Kbene/ Rede Social/ janjalula

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  1. Como sempre, na mosca. Você deu uma das melhores definições do que é o nosso querido país. É para anotar no caderninho: "eterno looping de esculhambação". Perfeito.

  2. Já coloquei meus comentários na leitura pelo meu PC, então aproveito agora para te desejar, Ruy Goiaba, boas férias. Aproveite bem, pois quando voltar já vai ter muito trabalho de novo. Divirta-se!

  3. A solução é aproveitar a dica do jumento do IBGE: tirar a roupa e fugir pra selva como antes de 1500

  4. Artigo perfeito , como sempre irretocável. A única tristeza são essas férias do colunista. É que ficamos órfãos de inteligência real.

  5. Sobre esculhambação: A imprensa informando que o presidente da Câmara está reinvindicando terras que nunca declarou no momento de disputar várias eleições! Precisa mais?

  6. O que de inteligente pode se esperar de uma mulher que resolve viver em companhia de cara execrável como o Descondenado? Nada. Mas ela sabe bem em qual lagoa aportou a perereca.

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