Ari Ferreira/Red Bull BragantinoJogo entre Bragantino e Botafogo: nenhum time passa incólume por tantas trocas de treinador em tão pouco tempo

O mal-estar na classificação

"Quem ganha e perde as partidas é a alma”, ensinou Nelson Rodrigues, que recomendaria Freud para o Botafogo
17.11.23

Em sua investigação sobre a felicidade, em O mal-estar na civilização (Penguin & Companhia das Letras), Sigmund Freud enumera três fontes para o sofrimento humano: “A prepotência da natureza, a fragilidade de nosso corpo e a insuficiência das normas que regulam os vínculos humanos na família, no Estado e na sociedade“. É possível notar, pela ausência da palavra “futebol” nessa lista, que o pai da psicanálise não torcia para o Botafogo, o time que perde por 4×3 após fazer 3×0, que abre 3×1 e leva outra virada por 4×3 e que, enfim, deixou escapar uma vantagem de treze pontos para o segundo colocado no Campeonato Brasileiro.

Nelson Rodrigues escreveu em 1956 que “só um Freud explicaria a derrota do Brasil frente à Hungria [na Copa de 1954], do Brasil frente ao Uruguai [na Copa de 1950] e, em suma, qualquer derrota do homem brasileiro no futebol ou fora dele”. “Quem ganha e perde as partidas é a alma”, resumiu o cronista. Há razões técnico-administrativas para explicar como o Botafogo conseguiu perder a liderança do campeonato para o Palmeiras — e a principal delas é a saída do treinador Luís Castro para a Arábia Saudita no meio do trabalho, após um início de primeiro turno brilhante —, mas o problema essencial parece estar dentro da cabeça dos jogadores botafoguenses, assim como sua solução.

É possível indicar o momento exato em que o trem descarrilou. Em 2 de setembro, Bruno Lage, o português que substituíra o outro português, Luís Castro, surpreendeu a todos ao colocar seu cargo à disposição na noite da derrota por 2×1 para o Flamengo. “Sobre essa coisa de só olharem para o meu percurso no Botafogo, acho que é uma pressão muito grande sobre os jogadores. E isso eu não admito. Só há uma forma de libertá-los dessa pressão. E por isso estou aqui perante vocês. Não falei com ninguém, pensei muito e, neste momento, coloco o meu lugar à disposição do diretor, à disposição do presidente”, disse o treinador.

Aquela tinha sido apenas a terceira derrota do Botafogo no campeonato, a primeira jogando em casa, após 22 rodadas. Não havia motivo para tanto drama, com dez pontos de diferença para o segundo colocado na tabela. Mas Lage conseguiu de fato atrair a pressão para si, tanta pressão que não foi capaz de suportá-la e acabou demitido um mês depois. Nenhum time passa incólume por tantas trocas de treinador em tão pouco tempo, mas eu gostaria de investigar por algumas linhas a origem da reação desproporcional de Lage.

Para mim, está claro que ele não suportou a sombra do antecessor. Luís Castro venceu 25 dos 38 jogos em que comandou o Botafogo e ainda é responsável por mais da metade (30) dos 59 pontos do clube carioca no campeonato, mesmo tendo deixado o time na 12ª rodada do Brasileirão — já foram disputadas 34. Como fazer frente a isso? É o que se questiona todo treinador que assume o Flamengo desde a temporada mágica de Jorge Jesus em 2019. Renato Gaúcho chegou à final da Libertadores da América e perdeu para o Palmeiras por detalhes, Rogério Ceni foi campeão brasileiro, Dorival Júnior ganhou a Libertadores e a Copa do Brasil, mas todos foram mandados embora por não terem repetido o encanto de Jesus — algo que provavelmente nem o próprio Jesus conseguirá.

O desmoronamento botafoguense leva o torcedor a se questionar sobre o que poderia ter sido feito. E se o treinador interino Cláudio Caçapa, que ganhou as três partidas que comandou entre a saída de Castro e a chegada de Lage, tivesse sido efetivado? As coisas estariam melhor? Impossível dizer. Pode ser que, ao assumir de fato o comando do time, o ex-zagueiro se enxergasse na mesma posição de Lage, sem conseguir substituir Castro à altura. A cabeça desempenha papel fundamental em todos os esportes, mas talvez apenas no futebol um time inteiro padeça de falta de confiança ao mesmo tempo, como se fosse um organismo.

Freud diz que são tantas as possibilidades de sofrimento que costumamos moderar nossas pretensões à felicidade. Segundo ele, não é de se admirar que as pessoas se deem por felizes apenas por escapar da desgraça e sobreviver ao tormento. “Em geral, a tarefa de evitar o sofrer impele para segundo plano a de conquistar o prazer.” É a descrição perfeita da torcida do Botafogo, educada para a prudência, a modéstia e a desconfiança por décadas de derrotas. Neste ano, esses torcedores deram o azar de liderar o Campeonato Brasileiro por 31 rodadas consecutivas e se entregaram à inglória busca pela felicidade. Apenas para aumentar a intensidade do próprio sofrimento.

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  1. Há ainda outra conclusão a se tirar do descalabro botafoguense: nunca baseie decisões de direção/administração na vontade dos jogadores. Eles quiseram a cabeça do Lage e, depois, a manutenção do Lúcio Flávio. Jogador tem que se manter em forma, cumprir o desejo do treinador e suar a camisa, nada mais.

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