ReproduçãoMichael Eisen: ele foi demitido do seu cargo na revista eLife

Liberdade de expressão deve valer até para os cretinos

O caso do geneticista americano demitido por um post insensível sobre Israel mostra que o “cancelamento" já não é praticado só pela esquerda 
16.11.23

Você já perguntou a seu cardiologista o que ele pensa sobre o genocídio armênio? Deveria perguntar: vá que ele seja negacionista… E sua dentista, a gerente do seu banco, o porteiro de seu prédio – o que eles acham de Pinochet e Fidel Castro? Pode ser hora de você se mudar: o catarinense no apartamento ao lado do seu deve achar que a Horda Canarinha tinha lá suas razões para tocar o terror em Brasília no 8 de janeiro, enquanto a vizinha cearense talvez acredite que Maduro é um democrata. A senhorinha simpática cujo poodle brinca com seu vira-lata no parque talvez tenha sentimentos nostálgicos em relação à ditadura militar. Mas atenção: o jovem veterinário que ela lhe indicou tem cara ser um neostalinista que nega o Holodomor.

Felizmente, não chegamos ao estado de permanente vigilância ideológica que o parágrafo acima esboça. Ainda aceitamos que no consultório médico a conversa se restrinja a questões de saúde e a observações inanes sobre o calor insuportável que anda fazendo. No entanto, vem sendo erodido o acordo social tácito que antigamente nos preservava de opiniões estupidamente monstruosas ou monstruosamente estúpidas mantidas por pessoas com quem nossa convivência é ocasional. Pois agora não precisamos mais conviver com alguém para saber de suas posições sobre a Guerra da Ucrânia, o aborto ou o apagão da Enel em São Paulo: todo mundo sente-se obrigado a dizer o que pensa nas redes sociais.

Eu não dispensaria um médico, um barbeiro ou um encanador por causa do que ele publica online. Nunca me ocorreu nem sequer procurar o perfil desses profissionais nas redes. Mas muita gente já perdeu o emprego e o sono por divulgar opiniões ligeiras no Facebook e no Twitter. Tornam-se vítimas do que se convencionou chamar de “cultura do cancelamento”.

O que me leva ao caso de Michael Eisen.

Professor de genética na Universidade Berkeley, Eisen também era editor-chefe do eLife, site dedicado às ciências biológicas. No dia 13 de outubro, ele compartilhou no X um texto do site humorístico The Onion cujo título era “Palestinos mortos em Gaza criticados porque suas últimas palavras não foram para condenar o Hamas”. No post, Eisen afirmou que The Onion falava “com mais coragem, percepção e clareza moral do que todos os líderes de instituições acadêmicas juntos”.

Na verdade, boa parte das universidades americanas foi condescendente com manifestações pró-palestina que, extrapolando os limites da crítica à política israelense nos territórios ocupados, clamaram pelo fim do estado judaico e até prestaram apoio ao Hamas. Os equívocos de Eisen e a cegueira de The Onion frente às barbaridades que o Hamas praticou no 7 de outubro merecem crítica. Mas as reações a seu post não foram propriamente argumentativas: muitos queriam apenas calá-lo. E conseguiram: ele acabou demitido de seu posto no eLife.

O parágrafo paródico que abre este texto elenca algumas profissões aleatórias: médico, porteiro, veterinário. Nenhum desses profissionais teria a competência comprometida por convicções equivocadas a respeito de Israel e Palestina. Da mesma forma, o post de Eisen não depõe contra suas qualificações como geneticista ou como editor de artigos científicos. O conselho editorial só o demitiu porque seu tuíte inflamou os ânimos nas redes sociais – e a reação das redes é sempre um péssimo critério editorial.

Eisen não foi um caso isolado de demissão ou “cancelamento” por opiniões contrárias a Israel. Houve até uma campanha para que potenciais empregadores não ofereçam oportunidades aos alunos de Harvard que subscreveram uma infame carta aberta atribuindo a Israel toda a responsabilidade pela violência do Hamas. Foi uma avaliação abissalmente cretina dos fatos, mas ela deveria condenar os estudantes ao desemprego eterno? Na semana retrasada, recomendei aqui um bom artigo de Simon Sebag Montefiore, mas deixei de apontar esta falha grave do historiador inglês: ele pede que os artistas britânicos que assinaram uma carta de repúdio a Israel (de novo, sem dizer um ai sobre o Hamas) sejam boicotados pelo público e pela indústria. Um dos artistas é Tilda Swinton, atriz cujo pensamento político não me interessa em nada, mas que eu desejaria ver em mais filmes. Ainda que a carta reunisse só mediocridades, é lamentável que apoiadores de Israel como Montefiore recorram à estratégia do boicote e do silenciamento praticada pelo BDS.

A esquerda woke ficou esfuziante com o caso de Eisen: acreditou que havia flagrado seus opositores em uma hipócrita duplicidade de padrões. “Onde estão os críticos da censura acadêmica agora que ela é praticada pela direita?“, perguntaram alguns. Bem, muitos deles se apresentaram para a defesa serena da liberdade de expressão – que, afinal, só vale quando a estendemos a opiniões que julgamos burras, equivocadas ou até imorais.

Em artigo no The Washington Post, a escritora Kat Rosenfield, uma das signatárias do famoso manifesto em prol do livre debate publicado na revista Harper’s em 2020, argumentou que opiniões cretinas não são razão para demitir alguém. A ativista da liberdade de expressão Nadine Strossen e a psicóloga social Pamela Paresky, ambas judias, defenderam que até antissemitas tenham direito à livre expressão – e o artigo delas foi publicado pelo The Free Press, site jornalístico cuja militância em favor de Israel vem ganhando um fervor quase religioso. O cientista político Yascha Mounk, crítico da histeria identitária, posicionou-se contra a demissão de Eisen na The Atlantic. Encerro com suas palavras:

Nós temos a responsabilidade de tolerar palavras e ideias que julgamos ofensivas, pouco importa a que ideologia elas alegam servir. (…) De outro modo, os limites do que é permissível dizer serão ditados pelo sempre cambiante e facilmente manipulável consenso do que os ativistas mais ruidosos das redes sociais acham revoltante.”

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