Instituto Lula/Juca MartinsLula durante greve no ABC paulista

Verdades e versões sobre as greves do ABC

A adoção de Lula pela esquerda oculta fatos relevantes e personagens históricos das greves dos metalúrgicos que solaparam a ditadura 
02.11.23

Dois fatos relevantes na história da queda da ditadura militar de 1964 no Brasil ocorreram no segundo semestre deste ano da pouca graça de 2023. O ex-advogado de Lula quando presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema (hoje do ABC), Almir Pazzianotto Pinto, publicou em 31 de março um livro fundamental para relembrar e elucidar os movimentos dos operários da indústria automobilística na virada dos 70 para os 80 do século passado, Greve – Grevismo na Nova República, pela Editora Mizuno. No sábado, 28 de outubro, morreu em Torrinha no interior paulista o advogado e político Antônio Tito Costa, 63 dias antes de completar seu 101º aniversário. Almir, esbanjando lucidez hoje aos 86 anos, caipira como o falecido, tem muito a relembrar da atuação que tornou o ex-prefeito de São Bernardo um verdadeiro herói da democracia brasileira e da liberdade conquistada pelos operários das grandes montadoras de automóveis e outras indústrias no país.

O presidente da República também teria, se não lhe faltasse vontade, muito a celebrar pela presença dos dois personagens deste texto nos eventos que o tornaram presidente da República por três vezes e hoje o mais celebrado da  História. Não se diga que o evento fatídico tivesse se ausentado do cotidiano presidencial. Ao contrário, o advogado foi citado em texto editado pelo chefe do Poder Executivo em suas redes sociais. Ali está escrito, registrado e gravado: “Tito Costa foi político, prefeito de São Bernardo do Campo, meu colega constituinte e um grande advogado e jurista. Atuou de forma democrática durante as greves do ABC nos anos 1970, em tempos difíceis e de muita pressão contra a organização dos trabalhadores. Convivemos e dialogamos muito naquela época e nas décadas seguintes na nossa São Bernardo do Campo. Meus sentimentos aos seus filhos, netos e amigos.” É possível até concluir que o filho de dona Lidu foi mais generoso dos que se referiram publicamente ao desaparecimento definitivo do histórico herói de nossa precária democracia.

É justo também registrar que os meios de comunicação foram mais parcimoniosos na reprodução dos feitos do líder do que o principal beneficiário deles. Mas isso não impede que a História seja desrespeitada não apenas para a recordação correta dos fatos, mas também de suas consequências. Em entrevista ao autor destas linhas, outra testemunha deste capítulo relevante da história da República e das lutas operárias chegou a afirmar que o redator ao qual o chefe do governo encomendou a corriqueira louvação post-mortem não tinha o devido conhecimento dos fatos para dar os destaques que o episódio comportava. Não, Lula, Tito Costa não foi apenas um “político” ou seu “colega constituinte”. Mas muito mais alguém que atuou de forma corajosa e democrática como prefeito do município onde ocorreram os conflitos entre grevistas e agentes repressores da ditadura militar que, à época, assolava o país. Testemunhas oculares e auditivas dos fatos de antanho, Almir e este repórter poderíamos, se consultados pelo apressado escriba da nota fria e pontual, esclarecer que na derrubada da ditadura protagonizada por Lula e seus liderados, Tito teve comportamento mais do que relevante, bravo e heroico. Pondo em risco o próprio mandato, para o qual foi eleito e depois reeleito, o especialista em direito eleitoral ora em tela cedeu várias vezes o paço em frente à sede da prefeitura para manifestações dos grevistas. Numa ocasião, teve o gabinete invadido pelos esbirros da polícia do regime autocrático em busca de líderes lá abrigados pelo chefe do Executivo municipal. A própria família Silva passou 20 dias no sítio de Torrinha, onde o herói deste texto viveu sua aposentadoria do foro e dos cargos públicos, fora do alcance do DOPS estadual e dos centros de tortura do nada glorioso Exército Nacional, à época campo de ação de torturadores a pretexto de travarem uma guerra suja.

Não foi o único. Carlos Alberto Libânio Cristo, o frei Beto, dominicano leigo, hospedou-se na casa de Lula com dona Marisa e os filhos, quando o chefe da família esteve preso. Convém destacar o papel de destaque de outro herói da democracia naquele mesmo cenário, o então bispo de Santo André, dom Cláudio Hummes, que morreu também em ostracismo no ano passado após longa enfermidade em São Paulo, de que foi arcebispo, ocasião em que chegou a ser cotado para figurar na eventualidade de ocupar o lugar ao qual foi elevado o argentino Bergoglio, atual papa Francisco. Dom Cláudio correu o grave risco de  abrir a matriz de São Bernardo, sob sua jurisdição, para reuniões dos sindicalistas postos na ilegalidade pelos milicos e para a gestão do fundo da greve.

Pelas contas de Pazzianotto, no Nêumanne Entrevista no YouTube, a única greve que pôde cantar vitória foi a de 1978, decretada pelos operários da Scania e apoiada por Lula na presidência do sindicato. Mas ninguém negará que as derrotas dolorosas das grandes paralisações seguintes tiveram alta relevância no desgaste que levou o regime tecnocrático-militar ao desmanche.

Nada disso tira o mérito de Lula na liderança desse processo, que o levou à prisão e à intervenção na presidência em que se destacou para chegar ao êxito político das três gestões presidenciais. Um reconhecimento cabal da participação de Almir, Tito, Beto, dom Cláudio e outros até tornaria seu feito mais valioso.

 

José Nêumanne Pinto é jornalista, poeta e escritor

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  1. Faltou dizer se a história de luladrão inclui a de vender greves e suspensão delas. Se realmente vivia em contubérnio com os empresários e multinacionais

  2. Meu sogro trabalhava por ali na a época e contava que coisas desabonadoras semelhantes ao que já foi verificado já eram modus operandi.

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