Luisa Arraes como Diadorim no filme Grande Sertão, de Guel ArraesLuisa Arraes como Diadorim: para "atualizar" a obra de Guimarães Rosa, personagem é não binário

Produção artística viciada

Trailer do 'Grande Sertão' de Guel Arraes, que causou celeuma, contém todos os clichês da linguagem cinematográfica brasileira
02.11.23

A Paris Filmes lançou o trailer do longa-metragem Grande Sertão, apresentado como uma releitura do clássico de Guimarães Rosa. O trailer do filme, dirigido pelo experiente Guel Arraes – que fez O Auto da Compadecida e Lisbela e o Prisioneiro –, provocou certa celeuma nas redes sociais. Alguns criticaram os clichês do cinema brasileiro, outros a adaptação cinematográfica do livro, que parece no mínimo distante do original, outros a própria linguagem do trailer: “Estamos em 2023 e estão fazendo trailers com narrador e com cortes sem sentido algum, estilo anos 1980?”. Houve quem dissesse, ainda: “Pior de tudo é a estética de produção esquecida da Netflix”. Alexandre Soares Silva ironizou no X (ex-Twitter): “Depois que vi o trailer de Grande Sertão Veredas deixei de sentir o cheiro das coisas e metade do meu corpo não se mexe”.

Por que o trailer causou tal reação negativa?

Não é novidade que o cinema brasileiro tem sido refém de uma série de lugares-comuns. No cinema documentário, temas como ditadura, Tropicália, impeachment de Dilma, foram explorados à exaustão. No cinema de ficção, a violência urbana, a favela, o sertão, o recorte de luta de classes. Houve uma saturação.

O trailer do Grande Sertão de Guel Arraes contém todos esses clichês temáticos do cinema de ficção, e vários outros da linguagem cinematográfica: as atuações “viscerais”, a câmera tremida, os close-ups exagerados, a favela estilizada puxando para uma cor.

Outro lugar-comum no cinema brasileiro dos últimos anos é uma tentativa de produzir um falso realismo fantástico. Falso porque são apenas elementos da vida cotidiana brasileira – a violência, a favela – levemente estilizados, com personagens caricaturais. Bacurau, de Kleber Mendonça Filho, é um bom exemplo. Não chega a ser uma distopia bem concebida ou uma realidade alternativa de filmes como Mad Max.

Houve quem criticasse os julgamentos sobre o filme – que nem saiu ainda – a partir do trailer. O problema é que o trailer já traz o tom do filme – não há muito o que o filme possa fugir disso. Por exemplo: a forçação política fica evidente no trailer e nas declarações dos realizadores. Grande Sertão foi divulgado como sendo uma adaptação de Guimarães Rosa que relaciona o romance com o Brasil atual, do presidente Bolsonaro aliado a milícias, com um Diadorim não-binário – o que eles entendem que é uma “atualização” da obra. Guel Arraes declarou: “Com Bolsonaro, ficou evidente o lado violento do Brasil, quando os monstros saíram do armário. O livro deu a chance de tratar disso sem proselitismo político”. O ator principal do filme, porém, tratou de fazer proselitismo político: “A gente está vivendo o aumento da violência urbana, da força das milícias. A gente tem a Presidência da República tomada pelo apoio direto de milicianos. Grande Sertão é uma obra que se repete, como se fosse circular. É essa a história do Brasil”, disse Caio Blat.

Aliás, já dá para ver pelo trailer também que se trata de uma releitura bastante livre da obra. Outro ator do filme, Rodrigo Lombardi, declarou o seguinte: “Costumo dizer que a gente está fazendo uma obra de ‘Guelmarães’. A cara do Guel está muito no filme”.

Essencialmente, Guimarães Rosa não tem nada a ver com aquilo.

Certa vez visitei a casa de campo do filósofo Ernildo Stein, no interior do Rio Grande do Sul. A casa (que ele chama de cabana, assim como Martin Heidegger, a quem conheceu pessoalmente e cuja obra comentou e traduziu), ficava ao lado de uma casa que foi abandonada com tudo dentro, juntando ratos e insetos. Até que ele contratou uma retroescavadeira e a soterrou, literalmente. E ainda plantou laranjas por cima. Tive a oportunidade de provar das laranjas no terreno que passou a existir acima da casa abandonada e soterrada, com o filósofo.

A impressão que tenho é que o cinema brasileiro está no estado da casa soterrada: um ambiente fechado, sem ar, em decomposição. É uma atmosfera viciada, autorreferente. A estética é forçada e a inserção da política – seja ela marxista ou identitária – é artificiosa e oportunista. É um ambiente que não se pode respirar.

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  1. Por isso é tão importante garantir financiamento público e aprovar obrigatoriedade de espaços Pras produções nacionais em cinemas e serviços de streaming: os profissionais ruins precisam dessa garantia para sobreviver

  2. E além do mais, para esses lacradores pouco importa se terá público ou não, pois a produção já está paga com dinheiro público.

  3. Essa produção pode ser qualquer coisa, exceto o Grande Sertão: Veredas. O pouco que li a respeito me causou náuseas, a deformação da obra em si já é um insulto, e merece nada além do fracasso e esquecimento.

  4. Foi como o chororô com Central do Brasil quando perdeu o Oscar. O filme até tem seus méritos, mas depois que vc assiste A Vida é Bela, entende pq este levou a estatueta. Outro bom exemplo é o cinema argentino, disparado melhor que o nosso. Acredito que não faltam diretores e atores talentosos no Brasil, mas o ambiente cinematográfico nacional precisa ser "reinventado", como a casa citada no texto. Quando teremos boas laranjas?

  5. A esquerdalha fedorenta predomina na produção "cultural' que merece distância. Mais um filme nacional que não vou passar perto. Pelas palavras do diretor e do ator percebe-se tratar de uma grande porcaria.

  6. A dita "Arte Brasileira" há muito está panfletária e tem muito pouco de arte verdadeiramente falando. Está em decomposição mesmo.

  7. Também estou farta dos clichês do cinema brasileiro. Se tiver trilha sonora de Chico Buarque então nem de graça.

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