O roqueiro Roger Waters e o presidente Lula durante encontro em outubro de 2023Roger Waters e Lula: ativistas - Foto: Ricardo Stuckert/Palácio do Planalto

Bombardeio de palavras

O emprego indiscriminado e vazio de termos como "apartheid" e "genocídio" sugere que a primeira vítima da guerra talvez não seja a verdade, mas a linguagem
02.11.23

“Eles supõem que nós simplesmente não sabemos nada sobre o assunto. Eles simplesmente jogam a palavra ‘apartheid’ para lá e para cá, e acham que isso resolve a parada.”

As frases acima são um recorte de um longo desabafo do músico inglês Thom Yorke em entrevista publicada pela Rolling Stone em 2017. “Nós” refere-se ao Radiohead, grupo que Yorke liderava e que naquele ano levou a turnê do disco A Moon Shaped Pool a Tel Aviv. O “assunto” é o conflito entre Israel e Palestina. E “eles” – as tais pessoas que  tinham Yorke e seus quatro companheiros de banda na conta de completos ignorantes em história e geopolítica do Oriente Médio – são os militantes do movimento pró-palestino BDS (sigla de Boicote, Desinvestimento e Sanções).

Entre outras atividades, o BDS pressiona artistas a cancelarem shows em Israel. O Radiohead não aderiu ao boicote e assim irritou o personagem de uma coluna que publiquei em junho: Roger Waters, o mais estridente dos ativistas do BDS. Atualmente em turnê pelo Brasil, o ex-líder do Pink Floyd até encontrou tempo para tirar uma foto ao lado de Lula.

Na entrevista de 2017, Yorke nada disse sobre Gaza ou Cisjordânia. Sua diatribe voltava-se contra o boicote como estratégia política. O que desejo reter da fala de Yorke é sua observação acurada sobre como a palavra “apartheid” era lançada a esmo na discussão. Continua sendo assim: a mesma palavra foi atirada na rua para justificar e até exaltar o ataque bárbaro do Hamas a Israel no 7 de outubro. Aqueles que a empregam dessa forma capciosa decerto imaginam que o apartheid original só chegou ao fim com Nelson Mandela comandando o massacre de brancos sul-africanos.

É outra a palavra que mais vem sendo chutada no campo esburacado da discussão pública: genocídio. Recentemente, o amigo que Roger Waters fez em Brasília falou do genocídio de crianças palestinas em Gaza. Também afirmou que o Hamas cometeu um ato terrorista, mas não deve ser considerado um grupo terrorista. Barateou um conceito – genocídio – e se valeu de uma distinção escandalosamente falaciosa para relativizar outro – terrorismo.

Na revista The Atlantic, Simon Sebag Montefiore , autor de Stálin – A Corte do Czar Vermelho e de Jerusalém – A Biografia, revisou de forma sucinta as políticas do estado de Israel nos territórios palestinos, demonstrando que a nação judaica jamais teve como objetivo o extermínio ou a limpeza étnica da população árabe. Falar em genocídio só esvazia uma palavra que, observa o historiador inglês, “foi desgastada pelo abuso metafórico a ponto de perder seu sentido”.

Isso não significa que Israel não tenha cometido abusos e crimes. Montefiore é incisivo na crítica aos assentamentos que o governo Netanyahu vem incentivando na Cisjordânia. Ele lembra que quase 400 palestinos foram mortos lá nos últimos dois anos: “Isso é horrendo e inaceitável, mas não é genocídio”.

O artigo de Montefiore traz um paralelo que ajuda a dimensionar o drama palestino-israelense. Desde 1860, o conflito em Israel matou 120 mil pessoas, entre judeus e árabes. A guerra civil na Síria, que começou em 2011, já matou 500 mil. No entanto, só Israel se impõe como aquela controvérsia geopolítica sobre a qual todos têm posições exaltadas e inarredáveis. No noticiário e na conversa cotidiana, a guerra na Faixa de Gaza já obscureceu até a invasão da Ucrânia – para nem falar de conflitos quase esquecidos como a agressão do Azerbaijão à Armênia e a guerra civil no Sudão.

Isso acontece, em parte, porque o teimoso impasse entre Israel e Palestina enredou-se na miserável retórica da guerra ideológica, que obriga tantos a seguir alinhamentos automáticos e a tomar posições estanques, seja qual for a circunstância. E também porque fatalmente entra em cena um ódio ancestral e, ao que parece, insuperável: o antissemitismo. No aeroporto do Daguestão e nas ruas de Londres, nos tuítes de veteranos da esquerda brasileira e nas manifestações de jovens da ivy league, o velho monstro, liberado pelas atrocidades do Hamas, dispensou as costumeiras perífrases e dissimulações para mostrar sua natureza violenta e, no limite, efetivamente genocida. Pois o bordão “do rio ao mar” é só uma forma kitsch de pregar o extermínio dos judeus israelenses.

Montefiore encerra seu artigo em nota esperançosa: desbaratado o Hamas, israelenses e palestinos, impactados pelos horrores da guerra, talvez consigam traçar as fronteiras de suas respectivas nações em um futuro próximo (sob um novo governo em Israel: por boas razões, o historiador julga que Benjamin Netanyahu não está à altura da tarefa). Torço para que seja assim. Por ora, porém, o que temos é  uma geração de israelenses ferida pelo maior extermínio de judeus desde o Holocausto, uma população palestina sacrificada por bombardeios diários, um governo israelense desacreditado que só conseguiu alguma unidade nacional sob agressão e, na Cisjordânia, um governo palestino no limite da irrelevância.

***

Este é o quarto texto que escrevo sobre Israel e Palestina. Deve ser o último. Não pretendo voltar ao assunto tão cedo.

Talvez eu também seja culpado de lançar palavras gastas em torno de um tema difícil. Pelo menos, busquei as palavras de pessoas dotadas de uma compreensão histórica mais ampla que a minha. Boa parte do que escrevi glosava artigos de autores como Yascha Mounk e Montefiore. Ainda que eu possa ter dito grossas bobagens, o leitor sempre encontrou recomendações de leituras melhores.

Abri a série falando de uma vítima do Hamas, a tatuadora israelense-alemã Shani Louk, de 22 anos. Os terroristas desfilaram em uma caminhonete exibindo o corpo da jovem como um troféu de guerra. Quando esse artigo foi publicado, relatos incertos indicavam que ela estaria viva em um hospital em Gaza. Nesta semana, essas rumores foram desmentidos: Shani foi assassinada no 7 de outubro.

O primeiro dos meus artigos foi inspirado pelo horror. Este texto encerra a série sob o signo da melancolia.

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  1. Ignorância ou cinismo, pode escolher a razão. O objetivo, contudo, é a utilização política de uma tragédia constante para tratar poder

  2. Quero que Montefiore esteja certo quanto a sua esperançosa teoria que exterminando o Hamas, israelenses e palestinos encontrarão um solução para seu problema.

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