UNRWACena na Faixa de Gaza: algo precisa ser construído no lugar, para que novos grupos antissemitas não vicejem sobre os escombros

O desafio do pós-guerra

O desmantelamento do Hamas é necessário, mas não suficiente para garantir um futuro pacífico para os povos de Israel e da Faixa de Gaza
27.10.23

Jacob Katz, 25 anos, americano e neto de sobreviventes do Holocausto, serviu no Exército israelense entre 2018 a 2019. Ficou estacionado na fronteira com a Faixa de Gaza, bem no ponto em que o muro foi derrubado pelos terroristas do Hamas, no último dia 7. De seu posto de vigilância, Katz acompanhava protestos do lado palestino, contidos com gás lacrimogêneo quando havia tentativas de explodir o muro. “Quando eu espiava o outro lado, não via apenas terroristas do Hamas ou da Jihad Islâmica; eu via famílias – homens, mulheres e crianças, todos vagando a esmo”, diz. Katz viu certa vez um grupo de meninos chutando uma bomba de gás quase vazia “como se fosse uma bola de futebol”, esporte que ele mesmo praticou em sua escola na Flórida. “Eu me perguntei como minha vida seria se eu vivesse do outro lado da cerca. Eu teria concordado com aqueles que me diriam para desejar a morte de outro povo?” Recentemente, sob o impacto do massacre do 7 de outubro, ele viajou para Tel Aviv, onde está recolhendo contribuições para o esforço de guerra.

Amjad Abukwaik, 54 anos, palestino de Gaza, vive nos Estados Unidos desde os 19 anos. Hoje é proprietário de uma farmácia em Paterson, Nova Jersey. Na adolescência, escondido no quarto, fazia bandeiras palestinas para serem usadas em protestos contra Israel. Com seus colegas de aula, também atirava pedras nos soldados israelenses que montavam guarda do lado de fora da escola. As pedradas davam vazão a sua raiva por se ver submisso a um poder estrangeiro em sua própria terra. Abukwaik diz, no entanto, que ama os judeus: “Meu problema é com o estado de Israel”. No ano passado, ele levou seu filho, recém-formado na universidade, para conhecer Gaza. O pai espera que a viagem tenha ensinado o jovem a valorizar o conforto de sua vida nos Estados Unidos. Parentes de Abukwaik – uma prima e quatro filhos dela – morreram nos primeiros ataques aéreos de Israel. “Muito da minha amada Gaza se foi”, lamenta o farmacêutico.

Muito tristes, cada um a sua maneira, os depoimentos de Katz e Abukwaik foram publicados por The Free Press, site criado pela jornalista Bari Weiss, defensora ardorosa de Israel. Talvez pareçam o retrato de uma mesma realidade, vista de perspectivas opostas. Não é exatamente assim: quando Abukwaik imigrou para os Estados Unidos, em 1988, o Hamas ainda não mandava em Gaza. Com a distância de pouco mais de três décadas, porém, encontramos o mesmo atrito permanente e insuperável entre dois povos. Um lado joga pedras; o outro, bombas de gás. E isso são tempos de paz: em outras situações, armas letais voam de um lado ao outro da fronteira.

A guerra ora em curso ambiciona romper o impasse. Desmoralizado pelas falhas de inteligência e pela resposta lerda das Forças Armadas ao ataque do dia 7, o governo de Benjamin Netanyahu ambiciona a erradicação do Hamas. Nomes de líderes do terror que já teriam sido mortos nos bombardeios em Gaza são divulgados com frequência pelas Forças Armadas israelenses. Até onde sei, a prima do farmacêutico de Nova Jersey não consta dessa lista. Civis como ela serão a maioria dos mortos na guerra.

Mas civis como ela são “escudos humanos” do Hamas, certo? Sim, fato inconteste. O problema é que a expressão “escudo humano” tornou-se um clichê. Clichês nem sempre falsificam a realidade, mas costumam simplificá-la, empobrecendo nossa compreensão analítica. A questão maior que o clichê dos “escudos humanos” não responde é a seguinte: considerando que os bravos guerreiros do Hamas gostam de guardar seus foguetes na proximidade de prédios residenciais, hospitais, escolas e mesquitas, como deve agir uma ofensiva militar que pretenda respeitar as convenções internacionais?

Na revista The Atlantic, George Packer – autor de Desagregação, excelente painel da crise moral e política americana que veio na ressaca da crise econômica de 2008 –, argumenta que é do interesse dos próprios israelenses evitar baixas civis. Seu artigo parte do paralelo que muitos fizeram entre o 11 de setembro americano e o 7 de outubro israelense. Packer observa que há diferenças consideráveis entre os dois episódios, mas diz que a guerra do Iraque guarda uma lição para Israel: “Não deixe a sua justificada fúria tomar o lugar da razão”. A retórica do ministro da Defesa israelense, sugere o autor, indica que ele não seguirá esse conselho. “Nós estamos lutando contra animais e vamos agir de acordo com isso”, afirmou Yoav Gallant ao justificar o corte (mais tarde suspenso) de água, eletricidade e suprimentos básicos para Faixa de Gaza.

Packer também diz que Israel não deve entrar em Gaza sem um plano para o pós-guerra. Este é um ponto que Thomas S. Warrick, do Atlantic Council, desenvolveu com mais detalhe em um artigo publicado no The New York Times e reproduzido no Estadão. O autor trabalhou no Departamento de Estado de 1997 a 2007 e coordenou o Projeto Futuro do Iraque, estudo que traçou diretrizes para a reestruturação do país invadido pelos americanos em 2003. O trabalho acabou engavetado pelo então secretário de Defesa, Donald Rumsfeld, o que coloca Warrick na posição relativamente confortável de defender um plano que não foi posto em prática. Mas seu argumento central me parece correto: esmagar o Hamas não basta para desarmar os ânimos da sofrida população de Gaza. Algo precisa ser construído no lugar, para que novos grupos antissemitas não vicejem sobre os escombros.

Nem Packer nem Warrick cogitam em pedir um “cessar-fogo”, expressão que se tornou o clichê dos opositores de Israel. Depois dos assassinatos e sequestros cometidos pelo Hamas, dar folga ao grupo não é uma possibilidade realista. Mas pensar em um futuro para os palestinos depois do Hamas me soa bem razoável. Será exequível, depois de anos de trocas de pedradas, mísseis, bombardeios? Gostaria de acreditar que sim.

Enquanto escrevo, na terça-feira 24, a anunciada ofensiva terrestre em Gaza ainda não começou.

 

Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor

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  1. P gostei muito desse pontos que destaca e concordo plenamente. Sei que é difícil opinar quando se está no outro lado do mundo, mas vamos pensar que o Brasil convive com problemas que parecem insolúveis e semelhantes : o que é o PCC, as milícias, os donos das comunidades do rRJ?

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