Wikimedia CommonsO bando posa para a foto: pensar num bandido como agente cultural causa certa estranheza

O cangaceiro e o sociólogo

Quando o bandido foi morto, Oswald de Andrade declarou: “Não adianta. Mataram Lampião mas Gilberto Freyre continua vivo”
27.10.23

Por muito tempo, Lampião (pernambucano de Serra Talhada) não pisou em Pernambuco. O motivo era a política, feita pelo governador Estácio Coimbra, instigada pelo sociólogo Gilberto Freyre. A ação governamental ia na fonte do problema do cangaço: atacava os coiteiros, aqueles que forneciam mantimentos aos cangaceiros. Freyre era chefe de gabinete do governador do estado de Pernambuco e teve de lidar diretamente com esse problema que afligia as regiões interioranas do Nordeste do Brasil.

Lampião, o rei do cangaço, além do banditismo, teve uma atuação cultural. Escreveu poemas que foram reproduzidos à exaustão, especialmente na literatura de cordel, compôs músicas, concebeu e costurou as próprias roupas e do seu bando, com um grau de sutileza e originalidade jamais vistos.

É por isso que o padre Frederico Bezerra Maciel, autor de uma biografia em sete volumes do cangaceiro, escreveu: “O ‘bandido’ em Virgulino era apenas um ‘acidente’. Sua indiscutível genialidade superaria tudo o mais!”.

Mais do que a atuação direta produzindo cultura, como sujeito inspirado que era (os estudos de Frederico Pernambucano de Mello – parente de Gilberto Freyre – mostram o refinamento que tinham as roupas do bando de Lampião), sua figura ensejou a produção artística como poucos. É incontável o número de livros, peças, filmes, figurinos, que inspirou. Ele está em filmes do Cinema Novo, em peças do Movimento Armorial – sendo a mais famosa delas O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna. A ex-BBB Juliette, por exemplo, quando quis se caracterizar de nordestina, usou o chapéu de Lampião.

De alguma forma a existência do rei do cangaço moldou a identidade e a cultura do Nordeste do Brasil. O que não deixa de ser salutar, uma vez que ele era um bandido sanguinolento – ele e seu bando mataram, torturaram e roubaram muita gente. Pensar num bandido como agente cultural causa certa estranheza. Existe um lugar-comum moderno que opõe violência e cultura. Não raro vemos cartazes em manifestações que dizem: “Mais cultura, menos violência” ou “mais livros, menos armas”.

O escritor francês René Girard, porém, vê na violência a origem do sagrado, e também da cultura. Diz ele: “É a violência que constitui o verdadeiro coração e a alma secreta do sagrado”. A tragédia grega é um bom exemplo da violência – sacrifício ritual – transformada em cultura. A tragédia tem origem religiosa arcaica e situa-se em um período de transição para a ordem moderna, estatal e judiciária, que vai sucedê-la.

Também a história de Lampião se insere num período de transição. Os lugares em que ele circulou, o Vale do Pajeú e o sertão nordestino, eram lugares que mantinham arcaísmos, vinganças, rixas sangrentas entre famílias. O cangaço, por exemplo, remonta à época da colonização – do qual Virgulino é o derradeiro e mais brilhante representante. Ele representava uma ordem passada, ou melhor, uma desordem, em que o estado ainda não tinha o controle completo do território brasileiro.

Gilberto Freyre também foi visto como representante de uma ordem passada. Quando Lampião foi morto, Oswald de Andrade declarou: “Não adianta. Mataram Lampião mas Gilberto Freyre continua vivo”. Para Oswald, Freyre representava o reacionarismo, sua presença na cultura brasileira era perniciosa para a juventude – daí o paralelo cruel com Virgulino.

Na realidade, Freyre teve uma atuação importantíssima para o modernismo brasileiro. Sua visão da modernidade, no entanto, era diferente daquela da Semana de 22. O modernismo de Freyre era a seu modo tradicionalista, mas principalmente regionalista – se bem que Otto Maria Carpeaux ressaltou o universalismo do seu regionalismo – e ficou registrado especialmente no Congresso Regionalista de 1926. Dele, surgiram grandes artistas como Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz. Até o Movimento Armorial, que esse mês de outubro faz 53 anos, é herdeiro do movimento iniciado por Freyre.

Por outro lado, não há nordestino do interior que não tenha uma história de Lampião para contar. A história de violência, que terminou com uma brutalidade sem precedentes (com os cangaceiros sendo decapitados, as cabeças expostas e os corpos deixados insepultos para os urubus comerem) terminou repercutindo profundamente na cultura. O cangaceiro e o sociólogo moldaram decisivamente a cultura nordestina.

 

Josias Teófilo é cineasta, jornalista, escritor e fotógrafo

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    1. Irônico é que Josias Teófilo é considerado direitista, discípulo de Olavo de Carvalho. No entanto, ele endeusa Lampião igualzinho a esquerda fez desde os anos 60 (vide o historiador inglês de esquerda Eric Hobsbawm, que analisou Lampião como "bandido social"). Hoje, o Lampião da esquerda é Marcola, que virou herói de livros e teses acadêmicas de esquerda.

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