Walter Firmo/Estadão ConteúdoJoão Cabral (1920-1999) em sua casa no Rio, em 1990; o Garoto Enxaqueca da poesia também tinha humor (negro)

Os limites do humor

20.10.23

João Cabral de Melo Neto, o Garoto Enxaqueca da poesia brasileira (literalmente: ele sofreu de enxaqueca por décadas), também sabia contar piada, por incrível que pareça. Em sua entrevista aos Cadernos de Literatura Brasileira do Instituto Moreira Salles, ele se lembrou de uma referente à Guerra Civil Espanhola: um prisioneiro dos franquistas estava sendo levado para o fuzilamento numa região especialmente fria da Espanha. “Puxa, como faz frio neste lugar”, disse o prisioneiro aos seus captores. Ao que um dos franquistas respondeu: “Sorte tem você, que não vai precisar fazer o caminho de volta”.

Foi a lembrança dessa entrevista de João Cabral que me motivou a escrever este texto. A pergunta que ela suscitou para mim foi a seguinte: existe um “período de carência” até que se possa fazer piada sobre alguma desgraça? Se sim, de quanto tempo? A Guerra Civil Espanhola, por exemplo, durou até 1939, mas seus efeitos se fizeram sentir por décadas, já que o vitorioso, Francisco Franco, governou a Espanha como ditador até meados dos anos 70. Fazer humor com a Peste Negra e outros horrores da Idade Média parece OK — vide O Incrível Exército de Brancaleone. Já o Holocausto é um tema sensível até hoje, por boas e óbvias razões: basta lembrar a polêmica em torno de A Vida É Bela cerca de 25 anos atrás, mesmo com todos os prêmios que o filme de Roberto Benigni levou.

Piadas com o nazismo, por sua vez, são plenamente possíveis — e nem é preciso lembrar dos inúmeros memes com dublagens de A Queda, o filme em que Bruno Ganz faz o papel de Hitler. Em um dos esquetes clássicos do Monty Python, John Cleese interpreta o ditador nazista pessimamente disfarçado numa cidadezinha da Inglaterra, apresentando-se como “Mr. Hilter” (num trecho, o sr. Hilter tem um mapa estendido sobre a mesa e diz planejar uma caminhada entre duas cidades inglesas; outro personagem avisa que ele pegou o “mapa errado, aqui é Stalingrado”). Mais recentemente, a dupla de humoristas ingleses Mitchell & Webb fez um esquete em que, num campo de batalha, um militar pergunta a outro: “Are we the baddies?” (nós somos os malvadões?). Não há suásticas no quadro — o emblema dos militares é um crânio —, mas a alusão é evidente.

(Outro assunto difícil para fazer humor, a violência policial contra negros nos EUA, rendeu pelo menos uma ótima piada de Chris Rock: “Toda vez que um negro inocente é morto pela polícia, vem o papo: ‘Não são todos os policiais. São maçãs podres. Mas algumas profissões não podem ter maçãs podres! A American Airlines não pode dizer ‘a maioria dos nossos pilotos sabe pousar'”.)

É verdade que, em geral, o alvo dessas piadas é a barbárie nazista ou a violência policial, não suas vítimas. Também é verdade que qualquer pessoa de bom senso — coisa que anda muito escassa nas redes sociais — sabe que não convém fazer piada em cima de uma tragédia recém-acontecida ou ainda em curso, como a atual no Oriente Médio: seria como fazer stand-up sobre uma pilha de cadáveres que ainda nem esfriaram. Dito isso, os exemplos que listei acima indicam que, mais que o tempo decorrido desde que a desgraça aconteceu, o que importa é como fazer humor a partir dela. Os melhores humoristas, sejam eles “provocativos” ou não, sabem abordar com inteligência temas delicados; sabem também que o humor é uma grande arma para que a gente consiga lidar com a dureza da vida. “Engenho” é a palavra fundamental aí: há piadas feitas “para chocar” que demonstram o mesmo esforço de inteligência de um moleque que cai de bunda no chão ou come cocô apenas para mostrar aos pais que pode.

A discussão sobre “limites do humor” costuma ser chatíssima, mas talvez seja útil aqui: esses são os meus limites, que não tenho a pretensão de impor a ninguém (infelizmente, ainda estamos longe do regime ideal, que seria o meu despotismo esclarecido). Os humoristas precisam ter liberdade inclusive para errar; não vejo outra alternativa a isso que não configure censura prévia. E, de qualquer modo, não custa lembrar que piadas são palavras. Sigo anotando mentalmente os nomes de toda essa gente hedionda, execrável, que consegue ao mesmo tempo alegar que “piadas matam” e que um massacre de civis indefesos é justificável.

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A GOIABICE DA SEMANA

Desta vez o prêmio vai para a sensibilidade e o timing do SBT, que anunciou o sorteio de uma “maravilhosa viagem” a Israel em plena guerra entre os israelenses e os terroristas do Hamas — com o adendo de que “você pode concorrer também a 14 iPhones!” (faltou dizer “a gente só não garante que você terá condições de usá-los”). A emissora alegou que o vídeo havia sido gravado antes do massacre de 7 de outubro. Seja como for, confio que o canal de Silvio Santos e Patrícia Abravanel (foto) ainda pode oferecer aos de espírito aventureiro incríveis viagens para o leste da Ucrânia, o Sudão e a própria faixa de Gaza.

 

Divulgação/SBT

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500
  1. Qdo era moço, contei uma piada "suja" para um grupo de amigos, alguns pertencentes à organizações ultra religiosas. Quem não era carola riu; quem era ficava olhando pro vazio, sem reação. Então é isso: censura prévia só deve existir pra si mesmo. E deixem os outros em paz.

  2. Sempre a minha primeira leitura da Crusoé, nunca decepciona! Com esses exemplos lembrei do Ricky Gervais, sempre polêmico e engraçado.

  3. No fim da década de 90, quando os crimes do Maníaco do Parque estavam sendo investigados, no calor dessa tragédia urbano, uma piada, estilo humor negro, era corrente nos grupos de amigos. Dizia-se, à época, “brasileiro faz piada de tudo…”. Reconto aqui: o Maníaco do Parque, tarde da noite, entra com a namorada no parque. Em certo momento, preocupada, a moça indaga: - amor estou ficando como medo. Eis que o namorado responde: - imagine eu, que vou voltar sozinho.

    1. Embora esse porco tenha sido apenado em 268 anos, está previsto sua soltura em 2028.

    2. Embora esse porco tenha sido apenado em 268 anos, está previsto sua soltura em 2028.

    3. Embora esse porco tenha sido apenado em 268 anos, está previsto que será solto em 2028.

  4. Maravilhoso seu texto. Quase todo dia comento sobre a necessidade de deixarmos mais amenas as dores do dia a dia. Não é debochar, mas acabamos sofrendo mais e mais sem podermos fazer nada. Além do mais, estou cansada dessa onda de censura prévia. Dias atrás respondi a uma pesquisa do Bradesco sobre o que eu achava de colcar mais humor em suas propagandas. Adoro a ideia. Mas fico indignada ao pensar que hoje é preciso perguntar antes se pode ou não brincar.

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