UNRWAPrédio destruído na Faixa de Gaza

Como salvar a verdade na guerra

27.10.23

Em 17 de outubro, quando a reação de Israel contra os terroristas do Hamas entrava em seu 10º dia, correu o mundo a notícia de que um hospital na Faixa de Gaza havia sido atingido por um míssil israelense, causando cerca de 500 mortes. Crusoé e O Antagonista pautaram-se pelo velho adágio de que a verdade é a primeira vítima das guerras: como neste momento não existem órgãos independentes capazes de apurar informações dentro de Gaza, não tratamos como confiáveis nem a tese de que Israel era responsável pelo incidente, nem o número de vítimas fornecido por um “ministério da saúde” controlado pelo Hamas. Boa parte dos grandes veículos brasileiros e estrangeiros deixou de lado essa cautela e registrou a história tal como ela havia começado a circular. Nos dias seguintes, os mais corajosos se retrataram, enquanto outros mudaram sua versão inicial sem admitir que haviam sido precipitados.

Tiveram de fazer isso porque imagens de projéteis voando pelo céu de Gaza pouco antes do impacto no hospital, fotos do lugar no dia seguinte e áudios divulgados pelas Forças de Defesa de Israel (FDI) foram submetidos a um intenso escrutínio por especialistas de diversas partes do mundo. Eles usaram a chamada inteligência de fontes abertas (OSINT, da sigla em inglês para Open-Source Intelligence), que submete dados de livre acesso disponíveis na internet e nas redes sociais a técnicas de análise forense, e puseram suas conclusões para circular. Um novo quadro emergiu: a hipótese tida como mais provável neste momento é que um foguete disparado pelos próprios terroristas, de uma área adjacente ao hospital, tenha falhado e caído no seu estacionamento, dando início a um incêndio que causou um número indeterminado de mortes.

“E aconteceu de novo”, lamentou, três dias depois da explosão, um especialista em OSINT do Centro de Análises Navais (CNA, na sigla em inglês), dos Estados Unidos, compilando manchetes da imprensa internacional sobre o alegado bombardeio israelense da Igreja São Porfírio, em Gaza, uma delas apontando o seu “colapso”. Ele mostrou, com imagens, que “a igreja de quase 900 anos ainda está de pé“, com “danos superficiais“, já que, na verdade, o alvo atingido havia sido um local próximo. “É absolutamente desconcertante”, comentou.

A OSINT é uma velha conhecida do mundo militar e amplamente utilizada por empresas de segurança e cibersegurança. A guerra contra o terrorismo em Israel pôs em destaque outra missão que ela pode cumprir: salvar a verdade numa era em que narrativas se impõem velozmente, caso não possam ser contestadas com base em dados objetivos.

A presença de jornalistas e outros observadores neutros em cenários conflagrados continuará sendo imprescindível, sobretudo para dar aos acontecimentos sua dimensão humana. Mas seria um erro ignorar as possibilidades trazidas pelas fontes abertas. “Existe a suposição, na maior parte do jornalismo, de que a única maneira de saber a respeito de algo é perguntando a alguém”, escreveu nesta semana o especialista em OSINT do Financial Times, John Burn-Murdoch. “Há anos já é possível fazer melhor que isso, mas a indústria ainda não embarcou nessa.”

 

Um mar de informações

“Os canais de OSINT tiveram uma explosão nos últimos anos”, diz o programador brasileiro Daniel Schnaider, que atuou na Unidade de Inteligência das Forças de Defesa de Israel nos anos 1990 e hoje é CEO da empresa de investimentos Platform Capital. “Há imagens de satélite como as do Google Maps em diversas plataformas. Há ferramentas que permitem geolocalizar computadores e celulares. Há todo o conteúdo aberto da internet e das redes sociais. Há câmeras de trânsito e de monitoramento de espaços públicos que o governo mantém e que você pode acessar do seu sofá.”

Um dos mais conhecidos e assíduos praticantes da OSINT no jornalismo é o site holandês Bellingcat. Pouco depois de sua criação, coube a ele demonstrar com fotos, imagens de satélite e alguns cálculos matemáticos que forças russas foram responsáveis pela queda de um avião da Malaysian Airlines na Ucrânia, em 2014. Um passeio pelas páginas do site mostra a grande variedade de informações que podem ser levantadas e, mais importante, verificadas com esse tipo de abordagem – do alistamento de um ex-guarda-costas da cantora Taylor Swift nas Forças Armadas de Israel à identificação de um esquema de contrabando de grãos da Ucrânia por navios clandestinos russos.

A guerra da Ucrânia, obviamente, também tem sido um foco constante da OSINT. A plataforma Geoconfirmed, por exemplo, foi estabelecida por voluntários no primeiro dia da guerra. “Nosso objetivo primário é estabelecer uma camada científica de geolocalização a conteúdos visuais, permitindo sua utilização para alertas, investigações, combate à desinformação e outros propósitos“, diz o site. O próprio Bellingcat atualiza continuamente uma página sobre o tema, esquadrinhando imagens de satélite e posts de redes sociais.

Outro exemplo de investigação de grande impacto com técnicas de OSINT resultou do trabalho de uma equipe da rede britânica de comunicação BBC, em 2019.

Um vídeo que mostrava a execução a sangue frio de duas mulheres e duas crianças havia começado a circular em meados de 2018, causando enorme impacto. Diante da acusação de que seus soldados haviam cometido a atrocidade, o governo de Camarões apresentou um desmentido, apontando para elementos como as armas e os uniformes usados pelos homens. Segundo as autoridades camaronenses, os assassinos atuavam em Mali e pertenciam ao grupo jihadista Boko Haram.

A BBC usou imagens de satélite para identificar uma cadeia de montanhas e prédios que aparecem no vídeo. Com base em detalhes como as sombras projetadas pelas pessoas, descobriu as possíveis datas do crime. Analisando fotos e filmes de arquivo, concluiu que as armas e uniformes eram, sim, compatíveis com aqueles utilizados por militares camaronenses. O material foi apresentado ao governo do país, que então afirmou que sete soldados estavam presos e sob inquérito pelo caso.

 

 

Segundo o fundador do Bellingcat, o jornalista britânico Elliot Higgins, a OSINT permite que pessoas comuns tenham acesso a um tipo de informação que antes só estava disponível para os governos. De acordo com ele, o propósito de seu site é ser “uma agência de inteligência para o povo“. Sua equipe já se tornou alvo da ira de governantes que abominam a transparência, como o russo Vladimir Putin. No começo deste ano, os organizadores do prêmio de cinema Bafta (o equivalente inglês do Oscar) impediram que o jornalista búlgaro Christo Grozev participasse da cerimônia. Grozev conduziu uma investigação do Bellingcat sobre o envenenamento do dissidente russo Alexey Navalny. Sua presença no Bafta foi barrada pela polícia britânica, que teria identificado riscos de segurança.

Como toda técnica, a OSINT também pode ser utilizada para fazer o mal. Em 2017, o aplicativo Strava passou a compilar dados de geolocalização dos treinos de atletas profissionais e amadores. Com base nisso, criou um mapa muito comentado com os locais preferidos para a prática de esportes pelo mundo. Cerca de um mês após o lançamento, analistas alertaram para o fato de que locais frequentados por soldados americanos próximos de bases militares no Níger, no Afeganistão e na Somália apareciam no mapa, praticamente convidando inimigos a um atentado. Em julho deste ano, comunidades de OSINT compartilharam a notícia de que um militar russo havia sido executado enquanto corria pelo trajeto compartilhado no Strava.

 

Nos primeiros dias da resposta de Israel ao Hamas na Faixa de Gaza, o X (antigo Twitter) foi inundado com conteúdo distorcido: uma imagem com fogos de artifício na Argélia foi exibida como bombardeio; mortos na Guerra da Síria de vários anos atrás foram apresentados como vítimas dos israelenses. “Dizem que achar uma agulha num palheiro é difícil. Eu diria que achar uma agulha verdadeira em uma montanha de agulhas falsas é ainda mais complicado”, afirma Daniel Schnaider. “O primeiro problema de quem trabalha com OSINT é encontrar a informação que pode ter algum valor em meio à montanha de informação irrelevante ou, pior, mentirosa das fontes abertas.” À medida que a criação e a manipulação de imagens e áudios pela inteligência artificial aumentar, o desafio da OSINT que se ocupa em desvendar fatos reais se tornará mais árduo – e também, cada vez mais, indispensável.

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  1. Nunca imaginei ter tanto desprezo a alguns "jornais" q sucumbiram anos de trabalho à divulgação de fake news! A imprensa mundial já contou com maior prestígio da população!!!

  2. "A primeira vítima da guerra é a verdade!" Mas para mudar isso precisaria ir fundo nesse esquerdismo do Islã. O motivo é mais religioso do que político essa agressão a Israel?

  3. O mau uso de tantos recursos serve às narrativas infames com as que vimos nos últimos dias, por outro lado há o desmascaramento dos canalhas contumazes.

  4. "A verdade não pode ser dita toda" dizia o psicanalista francês Jacques Lacan, mas ele acrescentou que se pode, sim, dizer dela um pouco mais e um pouco melhor! Parabéns Antagonista!

  5. Creio não ter sido acidental a queda do foguete ao lado do hospital. Foi criado um fato novo exatamente quando Biden iria visitar Israel. Este sim, foi torpedeado pela imprensa dominada pelos esquerdistas.

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