Carlos Moura/SCO/STFLuís Roberto Barroso: defesa dos reis togados

A raiz autoritária do barrosianismo

Presidente do STF lê a Constituição como se ela transferisse as questões mais polêmicas da vida brasileira da esfera da política para a do Judiciário
19.10.23

O presidente do STF, Luís Roberto Barroso, recém lançou uma tese sobre o papel dos ministros que precisa ser debatida. Trata-se de uma justificativa sobre porque o Judiciário interfere tanto na vida do país, alargando progressivamente sua atuação e testando os limites dos outros poderes, a ponto de despertar reações de contenção por parte de deputados e senadores de todas as denominações, não apenas da direita.

Na teoria barrosiana, o STF tem o direito de tratar de tudo porque o Legislador (já explico quem é esse personagem), ao incluir inúmeros assuntos na Constituição de 1988, resolveu tirar “temas da política e transferi-los para o mundo do direito”. Isso equivale a dizer que o constituinte não acreditava muito nos políticos que viriam depois dele e, por isso, definiu que quase toda a vida nacional, a partir daquele momento, precisaria da arbitragem de um grupo de iluminados.

A ideia de Barroso pode até parecer original, mas não é. Ela remete à tradição de pensamento platônica e às raízes do autoritarismo brasileiro de natureza positivista. Na primeira, existe a figura do rei filósofo, um conhecedor da verdade que, por causa disso, tem autoridade para organizar toda a sociedade como quiser. Essa ideia está na raiz de toda sorte de projetos autoritários, entre eles um bem tupiniquim que foi discutido e aceito seriamente na academia brasileira ao longo de boa parte do século XX. Nele, o nosso povo não está preparado para a democracia e isso justificaria governos verticais e tecnocráticos até que o cidadão estivesse suficientemente civilizado para tomar as rédeas da sua vida. Em resumo, uma sociedade democrática pode nascer de um Estado autoritário.

Ou seja, o que Barroso apresenta como novidade é, na verdade, algo que o processo civilizatório brasileiro luta muito para superar. Não é possível saber se o presidente do STF tem consciência de que, ao pregar que o constituinte decidiu “retirar uma questão da política para levá-la para o mundo do direito”, está recaindo na velha armadilha positivista, trocando apenas a figura do rei filósofo pela do rei togado.

Há também uma leitura equivocada da história por parte de Barroso. A teoria constitucionalista define que há uma entidade criadora da ordem política que é o tal do Legislador, aquele que escreveu a Constituição e do qual todo poder emana. Na sua retórica, ao promover uma constitucionalização ampla, a intenção dessa figura, que no caso não é hipotética, eram políticos do velho PMDB, do PTB, do PDT e do PT (embora o partido não tenha assinado a Carta), entre outros, era dar vazão a uma grande explosão de sentimentos de uma sociedade ansiosa por experimentar a liberdade e superar seus gargalos seculares.

Nesse sentido, numa ingenuidade compreensível para uma sociedade que, àquela altura, havia vivido apenas 18 anos de democracia com liberdade e inclusão eleitoral (1946-1964) e estava ansiosa para se modernizar, os constituintes colocaram na Carta todas as aspirações que, naquele momento, desaguavam em Brasília. O resultado, do ponto de vista romântico, pode ter sido muito bonito. Mas, sob qualquer aspecto prático, se criou um engessamento do país, tornando difícil gerenciar a vida cotidiana porque praticamente tudo passou a precisar de quórum qualificado para ser modificado.

A prática da utopia se transformou, de fato, numa experiência judicial e, diga-se, ruim. Como tudo pode ser encontrado na Constituição, tudo passou a ser questionado no STF. O PT foi o primeiro a usar esse expediente, criando, no período FHC, o famoso terceiro turno. Ou seja, perdeu no Congresso, questiona no STF. E os ministros gostaram da brincadeira porque, afinal, os onze passaram a experimentar um poder que nenhum deputado ou senador jamais teve a oportunidade de tocar.

É natural que Barroso busque construir um pensamento que legitime este poder que agora exerce. Mas, nesse caso, o ministro está se baseando em uma premissa que simplesmente não ocorreu. Ou alguém é capaz de conceber que os constituintes, no auge da democratização, no ápice da celebração do retorno da política, decidiriam retirar assuntos da sua alçada para transferi-los para togados? Pois trata-se exatamente do contrário: ao constitucionalizar tudo, os constituintes, em momento de efervescência, disseram que tudo é política.

Não é difícil compreender o mecanismo que pode ter levado essa projeção equivocada da história a ser construída. De tão acostumados a interpretar o que o Legislador quis dizer ao escrever a Constituição, é compreensível que, em algum momento, os ministros passem a se ver como o próprio, confundindo suas bocas e palavras com às dos velhos constituintes. Mas, se é possível manter alguma objetividade na história, deve-se lembrar que Ulysses Guimarães promulgou a nova Carta no plenário do Congresso e não em uma sala de audiência do Supremo.

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  1. Barroso garantiu seu lugar na História, sua “memória” será devidamente depositada em local apropriado, a 🚽, de onde seguirá para o cano após a descarga. Entretanto… não nasceu neste país ninguém mais perspicaz que Pelé que resumiu quinhentos anos em quatro palavras: “brasileiro não sabe votar”. Eu que já estou mais pra lá do que pra cá só tenho um sentimento: SCHADENFREUDE, porque a semeadura é opcional, mas a colheita, obrigatória.

  2. O poder sobe à cabeça . Os ministros do STF gostam desse poder, por vaidade ou por interesses muitas vezes não republicanos, como a indicação de apadrinhados para cargos, ou mesmo a permissão pra parentes atuar em processos no próprio STF. Por isso temos a insegurança jurídica e a blindagem mútua dos 3 poderes. Vergonha que contribui pra impunidade

  3. Os togados, mormente o ministro PerdeuMané, o ministro Ptoffoli e o ministro Beiçola Nefasto se imaginam muito acima das imensas limitações que possuem, quer no aspecto de conhecimento jurídico como no âmbito ético, e querem "iluminar" o país.

  4. Lula foi crítico ao texto e orientou a bancada do partido a votar contra a Constituição, mas a assiná-la. É o que consta em registro do discurso do petista em 22 de setembro de 1988, dia em que o texto final foi votado.... - Veja mais em https://noticias.uol.com.br/confere/ultimas-noticias/2022/08/11/pt-assinou-constituicao-de-1988-ao-contrario-do-que-diz-bolsonaro.htm?cmpid=copiaecola

  5. Salve Roberto Campos, que já alertava, durante a constituinte, da catástrofe que seria a Constituição de 88.

    1. O próprio Sarney (vaso ruim que não quebra) disse q a Constituição tornaria o país ingovernável. Agora, só com outra.

  6. Muito boa sua reflexão. E o que fazer diante desse grupo que se acha a perfeição. Donos da verdade. Só consigo acreditar que sempre existem interesses escusos por trás de cada decisão desses juízes. Perderam o respeito.

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