Foto: Reprodução, Acervo Walter Hugo KhouriMarcelo Ribeiro e Xuxa em cena de Amor Estranho Amor, de Walter Hugo Khouri: um cinema original - Foto: Reprodução

O cinema e as culturas nacionais tradicionais

O artista que quiser chegar à profundidade estética deve cavar na própria tradição a que pertence
05.10.23

Os filmes de Andrei Tarkóvski estão entre os mais influentes do cinema atualmente. Lars von Trier dedicou Melancolia a Tarkóvski depois de tê-lo como referência em vários outros dos seus filmes. O filme O Regresso, de Alejandro Iñarritu, vencedor de três Oscar, tem nada menos que 17 cenas com alusões diretas a filmes do cineasta russo. Até Oppenheimer, um filme eminentemente comercial, faz referência a uma cena do filme O Espelho, de Tarkóvski.

O problema é que todos esses cineastas, de contextos culturais distintos, tentam reproduzir elementos do cinema de Tarkóvski retirando-os do universo cultural que o originou. É como tentar plantar uma araucária, árvore própria das regiões frias, no Nordeste. Ou um cacto na Serra Gaúcha. O melhor aprendizado que eles poderiam retirar da obra de Tarkóvski é como ela se relaciona com a tradição russa. Uma árvore não nasce sem o solo adequado e sem as condições adequadas do clima.

Aos 32 anos, enquanto produzia o filme Andrei Rublióv, Tarkóvski deu uma entrevista à revista Cine Cubano, de Havana, sobre a arte e culturas nacionais tradicionais. Lá ele afirmou: “Devo dizer que, como problema geral, me preocupa muito a questão da nacionalidade na arte. No meu ponto de vista, a arte deve ser sempre nacional, não pode pertencer a todo o mundo por igual. Pode pertencer a todos como obra de arte já realizada, desde já; mas as fontes, as origens da arte, estão sempre num plano nacional.”

Como exemplos dessa nacionalidade fortemente presente na arte, ele cita Ingmar Bergman, Luís Buñuel, Akira Kurosawa – representantes inconfundíveis dos seus respectivos países e suas tradições, o primeiro na Suécia, o segundo na Espanha e o último no Japão. E acrescenta: “O desenvolvimento da arte espanhola, por exemplo, a linha que as tradições da Espanha seguiram, ilustram muito bem a necessidade que temos na atualidade de reelaborar as velhas tradições nacionais, de as assimilar de uma forma nova, utilizando os problemas contemporâneos, atuais.”

Ele fala já aí da “linha da tradição”, muito antes de escrever o seu livro Esculpir o Tempo. Tarkóvski ter concedido essa entrevista no momento em que estava realizando Andrei Rublióv, sobre o pintor russo de ícones, é extremamente relevante. O trecho acima descreve exatamente o que ele fez no filme: reelaborar a velha tradição nacional, utilizando a linguagem contemporânea do cinema, retomar a “linha da tradição” russa, apesar de viver na União Soviética – cuja cultura oficial se opunha à cultura tradicional, especialmente no aspecto religioso, muito ligado ao Império Russo.

O artista que quiser chegar à profundidade estética do cinema de Tarkóvski deve cavar na própria tradição nacional a que pertence. Não adianta pegar elementos soltos da obra deste – movimentos de câmera, detalhes da encenação ou cenários semelhantes. É por isso que aqueles que o imitam terminam realizando um cinema não tão relevante.

Se você parte da cultura brasileira, é ali que deve cavar. Ortega y Gasset, no livro Meditações do Quixote diz: “Não podemos entender o indivíduo exceto através da sua espécie. As coisas reais são feitas de matéria ou energia; mas as coisas artísticas – como o personagem Dom Quixote – são feitas de uma substância chamada estilo.”

Qual o estilo da arte brasileira? De modo mais imediato, a arte brasileira se filia ao barroco – foi esse o primeiro estilo que floresceu propriamente no Brasil. O barroco é a identidade brasileira.

Herdamos o elemento retórico do barroco, o espírito das contradições profundas, a exuberância das formas. Isso está na música, na arquitetura brasileira (até mesmo no modernismo de Oscar Niemeyer), na pintura, na escultura, e, mais recentemente, no cinema. Só que o barroco é a faceta última de algo ainda mais essencial. Ortega y Gasset diz que há não uma cultura latina, mas uma cultura mediterrânea – uma cultura que nasceu ao redor do Mar Mediterrâneo no contexto do Império Romano. A característica dessa cultura é o sensualismo. Diferente da arte germânica que é idealista, meditativa, a arte mediterrânea é impressionista, busca o fugaz, as superfícies.

“O Mediterrâneo é uma ardente e perpétua justificação da sensualidade, da aparência, das superfícies, das impressões fugazes que as coisas deixam sobre nossos nervos comovidos”, diz Ortega y Gasset.

A tradição nacional de que fala Tarkóvski não pode se basear, porém, em clichês da nacionalidade. Como os sambinhas, a praia ou a favela que muitas vezes são usados para representar o Brasil em filmes. O cinema de Walter Hugo Khouri – que recusa integralmente esses clichês da nacionalidade – é um excelente exemplo do sensualismo, da arte levada ao extremo das impressões sensoriais que vão da morte ao sexo, dos desejos inconscientes às convenções sociais.

Talvez Walter Hugo Khouri esteja no extremo oposto de Tarkóvski, sendo este tão voltado para a transcendência, e aquele para a imanência, as sensações. Os dois, porém, penetraram fundo nas suas respectivas culturas e fizeram algo original.

 

Josias Teófilo é cineasta, jornalista, escritor e fotógrafo

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  1. Confesso que não conhecia Tarkovski... Despertou minha curiosidade. O Livro de Ortega y Gaset, meditações do Quixote é sensacional! Simplesmente viajei incessantemente neste livro, a ponto de rabisca-lo por inteiro.

  2. Excelente. Tarkovski certíssimo. Inclusive isso é tão interessante ao assistir cinema internacional, fugindo do Hollywoodiano que estou tão acostumado. Cinema francês, argentino, espanhol, coreano são totalmente diferentes por inserir seu elemento cultural na forma de apresentar a história.

  3. Muito bom Teófilo. Sempre enriquecendo nosso olhar para a cultura. Só fiquei em dúvida se Niemeyer tem algo de cultura nacional. Acho ele muito fundado no Socialismo bauhausiano. Tanto que vemos uma Brasília fria, apesar do clima quente e seco.

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