Foto: DivulgaçãoGeorge Harrison em foto dos anos 60; em 1969, ele almoçou, largou os Beatles e foi comer batata frita na casa do amigo

Sejamos mais kafkianos

06.10.23

Já escrevi aqui, faz uns dois anos, sobre o abuso do adjetivo “kafkiano” na internet: basta um sujeito pegar, sei lá, uma hora de fila para comprar ingresso para algum show e lá vai ele para as redes sociais descrever sua provação como se fosse o próprio Josef K. de O Processo. Não que a burocracia e o sistema judicial brasileiros não ofereçam muitas oportunidades reais para você, pacato cidadão, se sentir dentro de uma mistura de Kafka com Os Trapalhões; é só que o pessoal às vezes exagera na tentativa de romantizar seu cotidiano tedioso.

(Aliás, podia haver uma moratória também para o uso do adjetivo “orwelliano”, especialmente vindo de gente que só leu o resumão de 1984 na internet; vocês sabem, aquelas análises do tipo “o Brasil deixou de ser orwelliano e virou kafkiano”, ou “deixou de ser kafkiano e virou orwelliano”, algo assim. Primeiro, o Bananão continua sendo um país acima de tudo odebrechtiano; segundo, o melhor Orwell é o dos ensaios, não o da ficção. Fim da divagação e do parêntese.)

Também já escrevi sobre meu conto favorito do Kafka, “A Próxima Aldeia” — um parágrafo só, que fica cada vez mais verdadeiro para mim à medida que envelheço: tem a ver com essa percepção de que os dias têm passado muito rápido, mais ou menos como a velocidade de um objeto caindo, que a aceleração da gravidade torna cada vez maior à medida que ele se aproxima do chão. Mas um dos meus trechos favoritos do grande escritor tcheco não está em nenhum dos seus livros de ficção. É esta passagem de seu diário, no dia em que estourou a Primeira Guerra: “A Alemanha declarou guerra à Rússia. – À tarde, natação.”

Quem assistiu a The Beatles: Get Back, o ótimo documentário de Peter Jackson, deve se lembrar de uma passagem parecida no diário de George Harrison: “Levantei, fui para Twickenham, ensaiei até a hora do almoço – deixei os Beatles – fui para casa e à noite toquei ‘King of Fuh’ no Trident Studio – comi batatas fritas mais tarde no Klaus e na Christine, fui para casa”. Por insistência de Lennon e McCartney, Harrison voltaria à banda depois; mas gosto desse jeito de tratar o que seria manchete nos jornais do mundo todo como um acontecimento a mais, e não particularmente relevante, entre almoço e batatas fritas na casa do Klaus.

É aí que precisamos ser mais kafkianos: não no sentido da burocracia e das decisões judiciais incompreensíveis, que já temos de sobra, mas nessa postura “e daí que o mundo está acabando? Vou lá nadar, não há mais nada a fazer mesmo”. Claro, fica mais fácil quando você não está no meio de uma guerra de verdade, mas até populações bombardeadas precisam tentar manter um fiapo de normalidade para não enlouquecer 100%. Gostar de grandes acontecimentos, emoções fortes, paixões avassaladoras etc., é coisa de adolescente: a rotina e a banalidade é que nos salvarão. Se vierem com batatas fritas junto, tanto melhor.

***

A GOIABICE DA SEMANA

Em redes como o X, ex-Twitter, o Supertrunfo da Opressão é um jogo real, em que as pessoas não hesitam em sacar a carta de “minoria oprimida” que estiver mais à mão. Nesta semana, durante a greve de funcionários do Metrô, CPTM e Sabesp em São Paulo, Emicida (foto) postou uma mensagem de apoio aos grevistas. Alguém perguntou se ele andava de ônibus; em resposta, o rapper postou uma foto dele num ônibus, com os gentis dizeres “jamais, aqui por exemplo sou eu no lombo da sua irmã”. Uma moça, branca, comentou “quando homens querem ofender uns aos outros, sempre sobra para uma mulher”; outra, negra, respondeu que, “quando mulheres brancas querem ofender homens, sempre sobra para um negro”. Isso que nem tinham entrado no jogo categorias como LGBTQIA+, cis, trans etc. O identitarismo alucinado é a maior diversão.

 

Foto: Júlia Rodrigues/Divulgação

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  1. Kafka e Orwell estão se remexendo nos devidos túmulos. Já Emicida provavelmente lançará mais um hit de sucesso.

  2. "o Brasil é um país odebrechtiano" e "supertrunfo da opressão", toda coluna temos uma nova e maravilhosa expressão. A grandeza do Brasil é nunca deixar de ser terra fértil para o humor. De resto, é para se dar descarga.

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