Lira e Lula: a balança de poder foi alterada - Foto: Marina Ramos / Câmara dos Deputados

Como o Congresso tomou o poder

Sem alarde ou grandes reformas, o Parlamento assumiu as rédeas da política no Brasil
22.09.23

Recentemente, o presidente da Câmara dos Deputados Arthur Lira (PP-AL) ficou melindrado porque o petista Fernando Haddad, ministro da Fazenda, disse que os deputados federais “estão com um poder muito grande” e que é necessário “construir uma moderação”, pois esse poder não deve ser usado “para humilhar o Senado e o Executivo”. Lira ficou irritado não porque Haddad tenha dito uma mentira, mas porque ele fez um diagnóstico correto. Nos últimos anos – e estamos falando de um passado bem recente, de 2020 para cá –, a fórmula do “presidencialismo de coalizão”, que vinha regulando as relações entre Executivo e Legislativo desde o governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), deixou de operar como antes. A balança do poder pendeu em favor do Congresso, da Câmara em particular, que agora tem mais condições de limitar as iniciativas políticas do governo ou lhe impor certas pautas. Lira tem tirado proveito máximo desse ambiente, reivindicando para si o protagonismo na condução de grandes reformas, como a tributária e a administrativa (que Lula e a esquerda não gostariam de fazer, pelo menos não de uma vez só, mas aparentemente terão de engolir). E não haveria o que questionar, não fossem alguns detalhes.

Primeiro, os congressistas ganharam um bônus sem o ônus correspondente: ao contrário do que acontece num regime parlamentarista, em que o chefe do Executivo e sua base de apoio são obrigados a enfrentar juntos novas eleições quando a gestão fracassa, no novo arranjo brasileiro alguns partidos podem exigir muito do governo em tempos normais e se afastar rapidinho se houver uma tempestade. O PP de Arthur Lira, por exemplo, acaba de ganhar um ministério e a Caixa Econômica com todas as suas diretorias, mas mesmo assim divulgou uma carta avisando que não faz parte da base lulista. O segundo problema é que mudanças no sistema político são tão necessárias para o Brasil quanto as reformas do sistema tributário ou administrativo, mas um Congresso anabolizado tende a fazer somente aquelas modificações que redundem em seu benefício. É feio. Mas enquanto as regras facilitarem a vida e a reeleição de cada parlamentar, estará tudo bem.

Neste exato momento o Congresso está entregue a uma dessas orgias em que só os seus próprios interesses são contemplados. Está prestes a ser aprovado o maior perdão financeiro já concedido aos partidos políticos brasileiros. A chamada PEC da Anistia, que deverá ser votada na Câmara na próxima semana, perdoará, para começar, cerca de R$ 880 milhões em multas pelo não cumprimento das cotas para mulheres e negros nas eleições de 2022. Como muitas outras pendências com a Justiça Eleitoral devem ser abrangidas, o valor total do indulto certamente chegará à casa dos bilhões de reais.

“Não temos dinheiro”, disse nesta quarta-feira a deputada Gleisi Hoffmann, presidente do PT, explicando o seu voto na comissão especial que deu um parecer favorável à PEC. Trata-se de uma visão peculiar do que é ter os bolsos vazios. A legenda de Gleisi e do presidente Lula é beneficiária da segunda maior fatia do fundo partidário de mais de R$ 1,1 bilhão reservado para este ano. Os quase R$ 153 milhões destinados ao PT só ficam atrás dos quase R$ 206 milhões destinados ao PL. Os dois grandes partidos são antípodas ideológicos, mas estão irmanados no propósito de legitimar o calote. Aliás, não existe partido que esteja fora dessa, com a possível exceção do Novo e do PSOL, que prometem votar contra o projeto no plenário.

A PEC é particularmente ofensiva porque o cidadão comum não tem como anistiar-se quando descobre que uma nova lei arrasou seu orçamento. Já os parlamentares criaram as regras de cotas, desrespeitaram as regras criadas por eles mesmos e, diante das consequências, se dão o direito de rasgar a conta, aproveitando ainda para afrouxar os parâmetros de proporcionalidade e financiamento das candidaturas de mulheres, negros e pardos em eleições futuras.

Há mais. Na semana passada, a Câmara aprovou uma “minirreforma eleitoral”. A expressão vai entre aspas porque reformas são feitas para melhorar o que já existe e as leis recém-criadas fazem o contrário, jogando por terra importantes avanços. Dois pontos são nevrálgicos: o esvaziamento da lei da Ficha Limpa e a reversão de pontos específicos das federações partidárias, instituídas em 2021 e testadas pela primeira vez nas eleições passadas.

Sobre a Lei da Ficha Limpa, a Câmara estabeleceu que, em caso de condenação por improbidade administrativa, o prazo de inelegibilidade passa a contar a partir da primeira sentença, e não a partir do fim do cumprimento da pena como ocorre atualmente.

Sobre as federações partidárias, chama atenção o fato de que penalidades eleitorais aplicadas a um partido deixarão de afetar os demais. O princípio da federação é que as siglas tirem vantagens da união, mas também arquem juntas com eventuais punições. A ideia dos parlamentares é livrar as legendas desse inconveniente, tornando as federações mais parecidas com as velhas coligações, que eram alianças transitórias, guiadas por interesses eleitorais momentâneos.

A “minirreforma” da Câmara também autoriza a propaganda política na internet no dia da eleição, uma espécie de boca de urna, e ainda estipula que os Fundos Partidário e de Financiamento de Campanha são impenhoráveis e não podem ser objeto de bloqueio judicial. Caso essa regra estivesse vigente, o PL, por exemplo, não teria tido R$ 22,9 milhões bloqueados por determinação do ministro Alexandre de Moraes, depois de sugerir que milhões de votos das eleições presidenciais de 2022 deveriam ser anulados, devido a uma falha inexistente na segurança das urnas eletrônicas. (Se tudo correr como esperado, o dinheiro do partido de Valdemar Costa Neto deve ser liberado pela PEC da Anistia).

Tudo isso precisa ser aprovado pelo Senado até o começo de outubro, para que possa valer nas eleições municipais do ano que vem. O presidente do Senado Rodrigo Pacheco (PSD-MG) não se comprometeu com a votação — o que não significa que ela não vá acontecer.

O ex-juiz eleitoral Marlon Reis, idealizador da Lei da Ficha Limpa, trata o pacote de regras pelo nome certo: retrocesso. “Às vezes, o parlamento aprova uma regra no calor dos acontecimentos e depois vê que ela prejudica a classe política. Aí vem o retrocesso”, diz ele. “Mas o Brasil não pode retroceder nesse sentido. Não estamos falando aqui em direitos individuais dos políticos, mas em direitos fundamentais da coletividade, concretizados em leis eleitorais. É como se Brasil tivesse evoluído a um patamar civilizatório e o Congresso buscasse rebaixá-lo a um ponto anterior.”

Seria injusto dizer que nenhuma regra de saneamento do sistema político e eleitoral aprovada em tempos recentes está passando incólume pela sanha revisionista do Congresso. Aquela que talvez seja a mais importante de todas, o endurecimento da cláusula de barreira, não está na mira neste momento. Aprovada em 2017, a nova cláusula de barreira restringe o acesso de legendas com baixo desempenho eleitoral ao fundo partidário e à propaganda em rádio e TV. As exigências vêm subindo com o tempo e, em 2030, somente continuarão contando com esses recursos aquelas legendas que atingirem 3% dos votos válidos para deputado federal em um terço dos estados da federação, ou elegerem um mínimo de 15 deputados, igualmente distribuídos por um terço dos estados. O objetivo desse mecanismo é diminuir o número de partidos no Brasil, que hoje é de 30, e o número de partidos no Congresso, que hoje é de 23 – ou 19, caso as federações sejam contadas como uma unidade. Essa enorme fragmentação, além de não expressar uma variedade real de posições ideológicas, dificulta a governabilidade e fomenta o toma-lá-dá-cá entre o Planalto e os partidos, que vendem sua “lealdade” em troca de cargos ou recursos do orçamento.

“À medida que os partidos menores tenham de entrar em federações ou passem por fusões para sobreviver, a face do Congresso vai mudar”, diz o cientista político Sérgio Abranches, que há mais de 30 anos formulou o conceito de presidencialismo de coalizão. “Estimo que sobrarão 8 ou 9 partidos grandes ou federações e, com isso, os governos formarão suas bases de modo mais fácil e natural, enquanto vai diminuindo a relevância do Centrão. Se as regras forem mantidas é isso que deve acontecer, basta ter paciência.”

Neste momento, contudo, a dominância do Centrão está no auge. E isso se deveu a outro tipo de “reforma”, que foi feita sem alarde e sem maiores discussões com a sociedade. O primeiro passo foi dado em 2015, quando as emendas parlamentares individuais se tornaram impositivas, ou seja, deixou de ser uma prerrogativa do Executivo decidir se o dinheiro reservado no orçamento para cada deputado ou senador direcionar à sua base seria ou não liberado. O governo ainda tem certo controle sobre o fluxo dos pagamentos, mas já não pode direcionar as verbas para outras finalidades. Desde então, as emendas de bancada também se tornaram impositivas e agora se cogita fazer o mesmo com as de comissão. Isso tirou das mãos do Planalto uma das suas principais ferramentas para construir maiorias dentro do Congresso e levar adiante uma agenda de votações.

E o famigerado orçamento secreto? Não foi uma derrota para o Congresso o fato de o STF ter declarado inconstitucional a distribuição de dinheiro sem nenhuma transparência, por meio das chamadas emendas do relator? Mais ou menos. “O orçamento secreto nasceu porque Jair Bolsonaro decidiu não formar uma coalizão para governar”, lembra o cientista político e colunista de Crusoé Leonardo Barreto. “Sem diálogo com o Executivo, o então presidente da Câmara Rodrigo Maia começou a usar as emendas do relator para encaminhar votações importantes. Mas ele ainda fazia isso de maneira tímida. Quando Lira substituiu Rodrigo Maia, Bolsonaro terceirizou para valer o trabalho de organização da sua base e o Congresso passou a controlar um processo que era do Executivo de ponta a ponta, desde a formulação das emendas até a execução.”

A proscrição do orçamento secreto deveria ter acabado com a festa, mas não foi bem isso que aconteceu. Durante as negociações sobre a PEC da Gastança –  aquela que deu bilhões para Lula gastar em seu primeiro ano de mandato – ficou definido que uma parte do dinheiro anteriormente destinado às emendas de relator ficaria nos ministérios em 2023, mas sua utilização seria definida pelo Parlamento com base em um tipo de emenda conhecido como RP2. Na prática, um pequeno grupo na cúpula do Congresso continua controlando as verbas, com alguma participação do governo.

“Antes desse processo, um deputado que executava 6 milhões de reais em emendas era um grande campeão”, diz Leonardo Barreto. “Hoje, cada deputado tem mais de 30 milhões para distribuir, seja da base, da oposição ou muito pelo contrário. Para comparar, o orçamento do Ministério do Turismo era de 19 milhões de reais no ano passado. Então, os deputados têm fartura de recursos para despejar em seus redutos eleitorais.” A proposta de Orçamento para o ano de 2024 prevê R$ 37,6 bilhões para as emendas parlamentares.

Há quem diga que o Congresso nada mais fez que alcançar a força (e o controle do Orçamento) que a Constituição de 1988 quis, de fato, lhe atribuir. Depois da Constituição de 1967 (para não falar dos vários atos de exceção da ditadura militar), que havia submetido o Legislativo a um Executivo autoritário, os autores da Carta de 88 teriam feito algo mais do que reequilibrar os Três Poderes: teriam criado um modelo de governo híbrido, de corpo parlamentarista e cabeça presidencialista. Depois de 35 anos de predominância do Executivo, o Legislativo finalmente teria encontrado a maneira de se impor.

O problema dessa tese é que na década de 1990, quando tiveram a chance de optar entre presidencialismo e parlamentarismo em um plebiscito, os brasileiros decidiram não transferir ao Congresso a tarefa de governar. E tampouco, em tempos recentes, autorizaram deputados e senadores a comandar uma fatia tão grande do Orçamento, irrigando suas bases com dinheiro segundo interesses paroquiais e sem maior apreço pela racionalidade: pouco importa se a verba seria melhor gasta na cidade vizinha; para o político, o que interessa é agradar o eleitor e manter as suas chances de vitória no pleito seguinte. Na verdade, o cidadão olha o Congresso com grande desconfiança. Segundo a pesquisa Datafolha publicada no último fim de semana, apenas 16% avaliam positivamente o trabalho dos parlamentares. O que fazer? “Nenhum grupo que conquistou um grande naco de poder vai abrir mão dele voluntariamente”, diz Sérgio Abranches. “Também não adianta imaginar que a situação vá se resolver por negociação, imposição ou, muito menos, judicialização, que só acabaria acirrando conflitos que já estão ferventes.” Reclamar a plenos pulmões cada vez que o Congresso tenta aprovar uma medida escabrosa como a PEC da Anistia é uma possibilidade. Além disso, votar.

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500
  1. O QUE SE PODE ESPERAR DE UM PAÍS QUE TEM UM POVO DE MIERDA QUE TROCA O VOTO POR DINHEIRO. COLOCAR BHOSTAS NO PODER. AGORA SE PHODEM.

  2. Depois da cassação do Deputado Deltan Dallagnol, e da Anulação da Lava Jato, estou fora, Cancelei o Titulo Eleitoral, Rasguei.

  3. Por isso, repito, sou a favor do parlamentarismo, de preferência com voto distrital. O congresso já tomou o poder, precisamos jogar os holofotes neles e escolher melhor os congressistas. Chega de perder tempo com líderes populistas da direita à esquerda. Ambos foram rendidos e só estão preocupados em se safar.

  4. A lamentar o baixo nível moral dos políticos, somando-se a indigência intelectual da grande maioria deles. No senado o nível é o mesmo.

  5. Votar( Mas se agora deputados eleitos com centenas de milhares de votos são cassados ao arrepio da lei. Votar já perdeu o pouco sentido que alguma vez teve nesse país. Participar dessa democracia de araque já passa a ser conivente com essa bandalheira

  6. SÓ FALTA AGORA A POPULAÇÃO TOMAR VERGONHA E VOTAR EM CANDIDATO SÉRIO PRA VER SE FAZEM ALGUMA COISA PELO POVO.

  7. Ledo engano pois na verdade o ridículo poder legislativo jaz rendido, e vendido, sob emendas parlamentares imorais para obras inúteis com Lira protagonista para se locupletarem apenas adiam o "gran finalle" da comuno-bolivarização do país que hoje somente o Senado se um homem o presidisse pode evitar DENTRO DA LEI evitando um possível banho de sangue numa guerra fratricida que a divisão das forças armadas pode causar pois com certeza haverá reação à escravização do povo ... e não censurem svp.

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