O personagem Pantera Negra, da Marvel: vídeo-game não interatio - Foto: Divulgação/Marvel Studios

Imaginação criativa e imaginação fantasiosa

Só uma delas tem conexão com a realidade e não está repleta de clichês e regras pré-determinadas
07.09.23

Qual o problema com a literatura de Harry Potter e similares? A princípio, nenhum. Uma peça de entretenimento pode servir para as mais diversas utilidades, inclusive como um simples passatempo ou distração. O livro só não serviu para introduzir os jovens na literatura, como se esperava.

No que Harry Potter e similares se diferenciam dos cânones da literatura? Em muitos pontos distintos, mas um em especial: para entendê-lo é preciso diferenciar imaginação criativa e imaginação fantasiosa.

Tudo que é possível e tudo que é impossível cabe dentro de uma obra de arte. Na verdade, tudo que pode ser imaginado. É por isso que Aristóteles diz que a poética é superior à história. A poética trata de conceitos universais, enquanto a história trata de temas específicos. Esta trata do que aconteceu, aquela de tudo que poderia acontecer, inclusive aquilo que aconteceu.

Carl Gustav Jung desenvolveu um método chamado de imaginação ativa. O método consiste em deixar a imaginação fluir de modo a tornar possível o diálogo com imagens psíquicas produzidas pelo inconsciente. Não preciso nem dizer que a imaginação ativa tem muito em comum com a elaboração de uma obra de arte. Jung falava muito de arte, inclusive. Só que Jung fala também de outra forma de elaboração psíquica, o pensamento dirigido. A atitude dirigida do pensamento é baseada na falta de contato com o mundo real, na fantasia e na subjetividade. “Se a desatenção aumenta, perdemos pouco a pouco a consciência do presente e a fantasia domina”, diz Jung.

Chamo esses dois polos de imaginação criativa e imaginação fantasiosa. A imaginação criativa, apesar de partir de elementos que são inconscientes, até mesmo irracionais, pode chegar ao real em toda a sua complexidade. A imaginação fantasiosa é repleta de clichês, subjetivista, e é baseada em elementos restritos, controlados. Não é à toa que o crítico Harold Bloom ataca Harry Potter exatamente pelos clichês. “É bruxaria barata reduzida a aventura, é repleto de clichês do começo ao fim”, diz o crítico americano.

O cinema atual está repleto da imaginação fantasiosa. Está na franquia Vingadores, nos filmes de super-herói em geral, na literatura de ficção científica barata. Ou mesmo nos filmes do chamado circuito alternativo que estão produzindo versões identitárias dos filmes de suspense e terror dos anos 1980. O que esses filmes têm em comum? A realidade reduzida a clichês, a visão restrita do mundo (desde as atuações, passando pelas cores padronizadas e metalizadas), como se fosse um vídeo-game.

É por isso que Martin Scorsese disse que os filmes da Marvel não são cinema: “O mais próximo que consigo pensar deles são os parques temáticos”. Eu acho que estão mais próximos do vídeo-game. O que é um vídeo-game? Uma realidade restrita em que todas as possibilidades estão dadas pelo programador. Não há abertura para a vida, como num filme de verdade, com atores reais, e um criador (ou vários criadores) por trás.

Vingadores é uma espécie de video-game não interativo. Os diretores Anthony e Joe Russo reagiram à fala de Scorsese dizendo que ninguém é dono do cinema: “Nós não somos donos do cinema, vocês não são donos do cinema, Scorsese não é dono do cinema”. Infelizmente não é verdade: os filmes de super-herói, esse gênero de vídeo-game não interativo, acabam sendo donos dos cinemas, sim: com seus orçamentos bilionários de marketing e distribuição eles ocupam tantas salas que a concorrência é impossível.

O problema não é a temática ou ser baseados em quadrinhos: Tim Burton fez um excelente filme, o Batman de 1989, um clássico que dialoga com o expressionismo alemão, com o film noir (o gênero mais misterioso do cinema), e tem atuações memoráveis de Jack Nicholson e Michael Keaton. Com seu Batman, Burton renovou o cinema comercial americano. Recentemente, o Coringa com Joaquin Phoenix chamou atenção pela capacidade de mostrar a loucura de modo totalmente original, e até pelo caráter profético: as cenas da destruição urbana no filme se parecem muito com as que aconteceram no ano seguinte nas manifestações antirracistas nos Estados Unidos. O filme parece inteiramente feito de material psíquico vindo do inconsciente – coletivo ou individual – e cabe muito bem na descrição de Jung.

 

Josias Teófilo é cineasta, jornalista, escritor e fotógrafo

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
  1. O que você considera filmes de imaginação fantasiosa nada mais é do que blockbusters puros . Entretenimento inócuo mas inofensivo.

  2. Concordo com tudo que diz Josias. Para quem tem proximidade com essas gerações que se movimentam pelas histórias fantasiosas sabe ver como esse comportamento destrutivo se reflete na vida cotidiana desses jovens. Fui professora por 35 anos em uma Universidade, e observei como está difícil eles "caírem na real". Vão ganhar o diploma, mas a competência depende muito de saberem separar fantasia de realidade.

  3. Quando mais novo, já gostei muito desse tipo de filme, mas com o passar do tempo, não suporto mais nem ouvir um lançamento novo da Marvel, Transformers, Star Wars (só vi os episódios 1 a 6). Quando comparados a obras primas do cinema (Ex: poderoso chefão), ou mesmo filmes menos conhecidos, mas com bom conteúdo (o cinema argentino tem ótimos exemplos), vemos que o conteúdo é muito fraco nos Blockbusters. Concordo com o autor sobre quem manda no cinema hj.

  4. Li com muita atenção e prazer seu artigo. Bem didático nas narrativas e citações. Para realizar um filme que atraia muito público e tenha sucesso entre os comentaristas é necessário ter talento, imaginação criativa e ... sorte.

Mais notícias
Assine agora
TOPO