ReproduçãoO libertário em campanha: dólares debaixo do colchão não poderiam ser usados pelo governo

Dá para dolarizar, Milei?

Proposta do presidenciável Javier Milei anima muitos argentinos, que não aguentam mais ver suas notas de pesos perderem valor 
08.09.23

O favorito às eleições presidenciais de outubro na Argentina, Javier Milei, é um populista adepto do libertarianismo. Ele defende a liberdade individual das pessoas, um Estado minúsculo e o livre mercado. Algumas posições de Milei geraram escândalo, como a simpatia pela venda de órgãos, algo que integrantes de sua campanha minimizam como apenas uma reflexão. O candidato ainda relativizou a venda de crianças. Depois, afirmou ser contrário a tal prática. Mas é na economia que estão as propostas que são carro-chefe de sua campanha. O candidato fala em oficializar a dolarização da economia argentina, extinguindo o peso e o Banco Central. Uma dolarização oficial, contudo, necessitaria de condições específicas, que não estão dadas no país. Além disso, Milei dificilmente conseguiria convencer a elite política, que ele chama pejorativamente de “casta”, a embarcar na sua aventura.

O candidato afirma que dolarizar é a única maneira de solucionar a crise inflacionária da Argentina, a pior em três décadas. O país registrou, em julho, uma inflação acumulada de 113% nos 12 meses anteriores. Nesse período, o valor do dólar no mercado paralelo, dólar blue, foi de 239 pesos argentinos para 550 pesos. Hoje, ele já está cotado a 725 pesos. A depreciação contínua da moeda argentina empurrou 40% da população para a pobreza. Ao longo dos anos, o controle da inflação foi comprometido pela indisciplina fiscal de sucessivos governos, levando o Estado argentino a acumular dívidas interna e externa exorbitantes, e a esgotar suas reservas em dólares. Não bastasse a carência estrutural, uma seca na safra de 2022-2023 custou 20 bilhões de dólares em exportações perdidas. É nesse cenário que Milei apresenta a proposta da dolarização. O fim do peso seria uma solução mágica para estabilizar a economia argentina.

Dolarizar, em sua forma absoluta, significa abolir a moeda nacional e determinar a sua substituição pelo dólar, que passa a valer em todas as transações que envolvam as pessoas, as empresas e o Estado. Mas não é só isso. Trata-se, no fundo, de garantir ao mundo que um país sem credibilidade não poderá mais sucumbir à tentação de desvalorizar bruscamente sua moeda para reduzir o peso da dívida pública – uma medida dramática, voltada a melhorar a percepção de risco de credores e investidores. Milei vai ainda mais longe, pois promete abolir também o Banco Central argentino, abrindo mão até mesmo de uma política de juros independente. Em contraste com o Brasil, por exemplo, onde o Banco Central procura influir no ritmo da atividade econômica (e portanto da inflação) aumentando ou baixando a taxa Selic, a Argentina se acomodaria às escolhas do Federal Reserve, o BC americano. Seria uma renúncia completa ao poder de fazer asneiras (de fato abundantes na história da economia argentina). Obviamente, há riscos nessa estratégia. Nem sempre os ciclos econômicos dos  Estados Unidos e da Argentina estarão alinhados. Neste momento, por exemplo, o FED procura desacelerar a economia, ao passo que os argentinos gostariam de aumentar a velocidade, pois preveem uma contração do PIB da ordem de 2% até o final deste ano. Milei não se preocupa em abordar dificuldades como essa. 

Não por acaso, a dolarização é algo raro de acontecer em países soberanos. Na América Latina, o único exemplo até a virada do milênio era o Panamá, um satélite dos Estados Unidos na América Central. Em 2001, foi a vez de El Salvador, que também orbitava a economia americana. As remessas enviadas pelos salvadorenhos que vivem nos Estados Unidos hoje respondem por 25% do PIB do país. Tal índice é impensável numa economia do tamanho da argentina, 17 vezes maior que a salvadorenha.

A dolarização também pode ocorrer em casos de colapso econômico, como no Equador em 2000 e no Zimbábue em 2009. O Equador é um caso sui generis relacionado à falência em série de bancos. O caso do Zimbábue é “clássico”. A inflação acumulada no ano no pré-dolarização chegou a 231.000.000%. Os preços no Zimbábue dobravam a cada 24 horas. “Dolarizar é uma solução extrema para um país em colapso. Esse não é o caso da Argentina hoje”, diz Juan Luis Bour, economista-chefe da Fundação de Investigações Econômicas Latinoamericanas (Fiel), em Buenos Aires. É mais fácil dolarizar uma economia colapsada, porque, se o valor da moeda em relação ao dólar é ínfimo, a quantidade de “verdinhas” necessárias para manter a economia girando também é pequena.

Endividado, o Estado argentino não tem dólares neste momento. Segundo o economista Martín Uribe, da Universidade de Columbia, o Estado precisaria de 30 a 40 bilhões para se dolarizar sem uma depreciação radical do peso (que sufocaria ainda mais os argentinos, em especial os mais pobres). Muitos argumentam que a economia argentina já é dolarizada devido ao setor privado. De fato, por fatores históricos, os argentinos detém a segunda maior quantidade de moeda americana fora dos Estados Unidos. Calejados pelas seguidas crises econômicas e desvalorizações constantes, muitos acumulam dólares dentro de casa, debaixo do colchão ou nos buracos das paredes. Estima-se que sejam mais de 200 bilhões de dólares. Mas esse dinheiro pertence ao setor privado, e apenas parte chegaria ao governo via impostos. Não poderia ser usado pelo governo para pagar os salários do funcionalismo, por exemplo. Quem precisa dos dólares para substituir os pesos e cumprir com as obrigações do Banco Central é o próprio Estado, diz Uribe.

Com as críticas se acumulando, o projeto de dolarização da campanha de Milei foi passando por mudanças ao longo do tempo, até ser totalmente reescrito em agosto. A nova proposta fala em terceirizar a renegociação da dívida pública e em uma dolarização gradual e voluntária no setor privado — os cidadãos e negócios argentinos converteriam seus pesos em dólares à medida que quisessem. “Não é muito clara a explicação. Escutei várias vezes e não está claro de onde viriam os dólares”, diz Uribe.

O fundamental em qualquer reforma monetária é que a estabilidade só é viável com disciplina fiscal. Ao gastar mais do que ganha, o governo argentino não acumula reservas. Além de não conseguir acumular divisas para comprar os dólares tão desejados, a dívida pública só aumenta e os empréstimos têm juros cada vez maiores. Em quase duas décadas, a dívida pública argentina diminuiu apenas em 2019, no último ano do governo de Mauricio Macri. Desde os anos 1970, a Argentina tem engatado uma série ininterrupta de gestões inconsequentes e muita má-sorte. Precisamos da disciplina alemã, mas temos políticos italianos, diz Bour. A dolarização por si não resolve a indisciplina fiscal e tampouco evita crises. Vide o Zimbábue, que precisou desdolarizar-se em 2019.

Propostas radicais podem ser eficientes em eleições, mas impraticáveis na política do dia a dia. Não é possível abolir o peso nem fechar o Banco Central sem maioria no Congresso, o que Milei está longe de conseguir. Seu partido deve ter apenas 40 de um total de 257 deputados. O candidato fala em alternativas como a convocação de plebiscitos ou cortes unilaterais de gastos, mas nenhuma dessas medidas pode funcionar sem apoio do Legislativo. Se Milei for eleito e quiser ter chances de cumprir alguma de suas promessas, ele precisará negociar com a casta política.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
  1. Estou torcendo pela Argentina. Por ora torço pelo Milei e recomendo, caso vença as eleições, pedir a colaboração dos geniais membros da equipe d ECONOMISTAS montada por FHC: Pérsio Arida, André Lara Resende, Chico Lopes, Gustavo Franco, Pedro Malan, Eduardo Bacha, Winston Frish e coordenadas pelo gestor Clóvis Carvalho (ver Plano Real-Wikipedia). Após um trabalho duro, inteligente e intenso desta equipe, o Plano Real deu muito certo e salvou a Democracia no Brasil. Lula e Bolsonaro foram contra!

  2. Talvez seja a única alternativa e empobrecerá mais os orgulhosos argentinos hoje na merda e pasmem saqueando bodegas para comer ... rabo de gardelóns vai arder e depois adivinhem o de quem? Éééé dos Manés sim.

  3. O Lula tem buscado incrementar o relacionamento pra com a Argentina, mas o risco parece alto do calote atingir os envolvidos. Muitas ideias dissonantes

Mais notícias
Assine agora
TOPO