Dá para dolarizar, Milei?
O favorito às eleições presidenciais de outubro na Argentina, Javier Milei, é um populista adepto do libertarianismo. Ele defende a liberdade individual das pessoas, um Estado minúsculo e o livre mercado. Algumas posições de Milei geraram escândalo, como a simpatia pela venda de órgãos, algo que integrantes de sua campanha minimizam como apenas uma reflexão. O candidato ainda relativizou a venda de crianças. Depois, afirmou ser contrário a tal prática. Mas é na economia que estão as propostas que são carro-chefe de sua campanha. O candidato fala em oficializar a dolarização da economia argentina, extinguindo o peso e o Banco Central. Uma dolarização oficial, contudo, necessitaria de condições específicas, que não estão dadas no país. Além disso, Milei dificilmente conseguiria convencer a elite política, que ele chama pejorativamente de “casta”, a embarcar na sua aventura.
O candidato afirma que dolarizar é a única maneira de solucionar a crise inflacionária da Argentina, a pior em três décadas. O país registrou, em julho, uma inflação acumulada de 113% nos 12 meses anteriores. Nesse período, o valor do dólar no mercado paralelo, dólar blue, foi de 239 pesos argentinos para 550 pesos. Hoje, ele já está cotado a 725 pesos. A depreciação contínua da moeda argentina empurrou 40% da população para a pobreza. Ao longo dos anos, o controle da inflação foi comprometido pela indisciplina fiscal de sucessivos governos, levando o Estado argentino a acumular dívidas interna e externa exorbitantes, e a esgotar suas reservas em dólares. Não bastasse a carência estrutural, uma seca na safra de 2022-2023 custou 20 bilhões de dólares em exportações perdidas. É nesse cenário que Milei apresenta a proposta da dolarização. O fim do peso seria uma solução mágica para estabilizar a economia argentina.
Dolarizar, em sua forma absoluta, significa abolir a moeda nacional e determinar a sua substituição pelo dólar, que passa a valer em todas as transações que envolvam as pessoas, as empresas e o Estado. Mas não é só isso. Trata-se, no fundo, de garantir ao mundo que um país sem credibilidade não poderá mais sucumbir à tentação de desvalorizar bruscamente sua moeda para reduzir o peso da dívida pública – uma medida dramática, voltada a melhorar a percepção de risco de credores e investidores. Milei vai ainda mais longe, pois promete abolir também o Banco Central argentino, abrindo mão até mesmo de uma política de juros independente. Em contraste com o Brasil, por exemplo, onde o Banco Central procura influir no ritmo da atividade econômica (e portanto da inflação) aumentando ou baixando a taxa Selic, a Argentina se acomodaria às escolhas do Federal Reserve, o BC americano. Seria uma renúncia completa ao poder de fazer asneiras (de fato abundantes na história da economia argentina). Obviamente, há riscos nessa estratégia. Nem sempre os ciclos econômicos dos Estados Unidos e da Argentina estarão alinhados. Neste momento, por exemplo, o FED procura desacelerar a economia, ao passo que os argentinos gostariam de aumentar a velocidade, pois preveem uma contração do PIB da ordem de 2% até o final deste ano. Milei não se preocupa em abordar dificuldades como essa.
Não por acaso, a dolarização é algo raro de acontecer em países soberanos. Na América Latina, o único exemplo até a virada do milênio era o Panamá, um satélite dos Estados Unidos na América Central. Em 2001, foi a vez de El Salvador, que também orbitava a economia americana. As remessas enviadas pelos salvadorenhos que vivem nos Estados Unidos hoje respondem por 25% do PIB do país. Tal índice é impensável numa economia do tamanho da argentina, 17 vezes maior que a salvadorenha.
A dolarização também pode ocorrer em casos de colapso econômico, como no Equador em 2000 e no Zimbábue em 2009. O Equador é um caso sui generis relacionado à falência em série de bancos. O caso do Zimbábue é “clássico”. A inflação acumulada no ano no pré-dolarização chegou a 231.000.000%. Os preços no Zimbábue dobravam a cada 24 horas. “Dolarizar é uma solução extrema para um país em colapso. Esse não é o caso da Argentina hoje”, diz Juan Luis Bour, economista-chefe da Fundação de Investigações Econômicas Latinoamericanas (Fiel), em Buenos Aires. É mais fácil dolarizar uma economia colapsada, porque, se o valor da moeda em relação ao dólar é ínfimo, a quantidade de “verdinhas” necessárias para manter a economia girando também é pequena.
Endividado, o Estado argentino não tem dólares neste momento. Segundo o economista Martín Uribe, da Universidade de Columbia, o Estado precisaria de 30 a 40 bilhões para se dolarizar sem uma depreciação radical do peso (que sufocaria ainda mais os argentinos, em especial os mais pobres). Muitos argumentam que a economia argentina já é dolarizada devido ao setor privado. De fato, por fatores históricos, os argentinos detém a segunda maior quantidade de moeda americana fora dos Estados Unidos. Calejados pelas seguidas crises econômicas e desvalorizações constantes, muitos acumulam dólares dentro de casa, debaixo do colchão ou nos buracos das paredes. Estima-se que sejam mais de 200 bilhões de dólares. Mas esse dinheiro pertence ao setor privado, e apenas parte chegaria ao governo via impostos. Não poderia ser usado pelo governo para pagar os salários do funcionalismo, por exemplo. “Quem precisa dos dólares para substituir os pesos e cumprir com as obrigações do Banco Central é o próprio Estado”, diz Uribe.
Com as críticas se acumulando, o projeto de dolarização da campanha de Milei foi passando por mudanças ao longo do tempo, até ser totalmente reescrito em agosto. A nova proposta fala em terceirizar a renegociação da dívida pública e em uma dolarização gradual e voluntária no setor privado — os cidadãos e negócios argentinos converteriam seus pesos em dólares à medida que quisessem. “Não é muito clara a explicação. Escutei várias vezes e não está claro de onde viriam os dólares”, diz Uribe.
O fundamental em qualquer reforma monetária é que a estabilidade só é viável com disciplina fiscal. Ao gastar mais do que ganha, o governo argentino não acumula reservas. Além de não conseguir acumular divisas para comprar os dólares tão desejados, a dívida pública só aumenta e os empréstimos têm juros cada vez maiores. Em quase duas décadas, a dívida pública argentina diminuiu apenas em 2019, no último ano do governo de Mauricio Macri. Desde os anos 1970, a Argentina tem engatado uma série ininterrupta de gestões inconsequentes e muita má-sorte. “Precisamos da disciplina alemã, mas temos políticos italianos”, diz Bour. A dolarização por si não resolve a indisciplina fiscal e tampouco evita crises. Vide o Zimbábue, que precisou desdolarizar-se em 2019.
Propostas radicais podem ser eficientes em eleições, mas impraticáveis na política do dia a dia. Não é possível abolir o peso nem fechar o Banco Central sem maioria no Congresso, o que Milei está longe de conseguir. Seu partido deve ter apenas 40 de um total de 257 deputados. O candidato fala em alternativas como a convocação de plebiscitos ou cortes unilaterais de gastos, mas nenhuma dessas medidas pode funcionar sem apoio do Legislativo. Se Milei for eleito e quiser ter chances de cumprir alguma de suas promessas, ele precisará negociar com a casta política.
Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.
Estou torcendo pela Argentina. Por ora torço pelo Milei e recomendo, caso vença as eleições, pedir a colaboração dos geniais membros da equipe d ECONOMISTAS montada por FHC: Pérsio Arida, André Lara Resende, Chico Lopes, Gustavo Franco, Pedro Malan, Eduardo Bacha, Winston Frish e coordenadas pelo gestor Clóvis Carvalho (ver Plano Real-Wikipedia). Após um trabalho duro, inteligente e intenso desta equipe, o Plano Real deu muito certo e salvou a Democracia no Brasil. Lula e Bolsonaro foram contra!
Talvez seja a única alternativa e empobrecerá mais os orgulhosos argentinos hoje na merda e pasmem saqueando bodegas para comer ... rabo de gardelóns vai arder e depois adivinhem o de quem? Éééé dos Manés sim.
Que a Argentina saia deste buraco, mas não sei se este seria o melhor caminho. Tem outros candidatos; vamos Argentina.
Não entendi os motivos do Milei ser considerado populista
Bom artigo.
O Lula tem buscado incrementar o relacionamento pra com a Argentina, mas o risco parece alto do calote atingir os envolvidos. Muitas ideias dissonantes