Sean Connery como James BondSean Connery como James Bond: agora o personagem é obrigado a ter opiniões - Foto: Divulgação

Por que nos interessamos por James Bond?

Mas isso vai acabar, já que as encarnações futuras de James Bond vão explicitar as suas opiniões sobre todos os assuntos, especialmente a política
01.09.23

Porque não sabemos muito sobre ele. Sim, sabemos como prefere o martini, sabemos que gosta de beber, que tem uma propensão à tecnologia, que gosta de jogos de cartas e que os pais morreram num acidente de esqui. E sabemos que gosta, ou gostava, de mulher. Mas é basicamente isso.

Sabemos pouco, e o que sabemos é superficial. E desse jeito conseguimos nos projetar nele, e viver o que ele vive, na imaginação.

Isso vai acabar, óbvio, já que as encarnações futuras de James Bond vão explicitar as suas opiniões sobre todos os assuntos do mundo, da invasão do Capitólio à origem laboratorial do Covid. Em breve saberemos exatamente o que James Bond achou sobre a eleição de Giorgia Meloni na Itália, sobre a série The Bear ou sobre as calças justas de Jorge Dória em 2020.

Se duvidam, vejam este trecho do novo livro de Bond, On His Majesty Secret Service, escrito pelo autor indicado pelos herdeiros de Ian Fleming, Charlie Higson. Bond está na Hungria perseguindo um político classificado como sendo (já que aparentemente James Bond e Flávio Dino estão alinhados nas suas preocupações) “extrema direita”:

“É por isso que Bond sentiu uma profunda sensação de tristeza pelo fato de este belo, civilizado e ordeiro país ter sido arrastado de volta para a extrema direita por Viktor Orban, usando o manual nacionalista, grosseiro mas eficaz. Agitando os húngaros com as suas teorias de conspiração anti-semitas e a retórica grosseira anti-imigração, “Tornar a Hungria Grande Novamente”. Ele alinhou-se com gente como Trump, Le Penn e Putin e, tal como eles, estava usando uma fachada de patriotismo fina como papel para mascarar o desenfreado interesse próprio.

Neste mundo incerto, a antiga atração do Homem Forte exercia um apelo irresistível para todos aqueles que se sentiam deixados para trás e desnorteados pela mudança.”

Não são só as opiniões políticas de Bond, são editoriais de jornal inteiros que ele fica parado pensando de maneira enfadonha, e errando a grafia de “Le Pen” ainda por cima, por não ter dinheiro para pagar revisores para os seus pensamentos.

A ideia inicial do seu criador Ian Fleming era que ele fosse um nada, um homem sem personalidade; o próprio nome “James Bond” foi escolhido (tirado do autor de um livro sobre passarinhos) porque parecia a Fleming um nome sem graça. Bond devia ser uma casca vazia para que nos projetássemos nele.

Mas como me projetar em alguém que tem opiniões tão banais? Tudo bem James Bond ser meio sensatinho, mas ele precisa ser o Guga Chacra? Ouvir os seus pensamentos precisa ser tão parecido com ouvir os pensamentos da Vera Magalhães?

Eu realmente preferia não saber essas coisas, mas azar o meu. Vamos saber até a política partidária de James Bond. Suas simpatias e antipatias por deputados e vereadores municipais. Saberemos em que candidatos ele teria votado nas eleições presidenciais de vários países nos últimos sessenta anos.

Porque é 2023, e as lealdades políticas de todos os personagens de ficção têm que ser explicitadas e esfregadas na sua cara.

Nesse livro ficamos sabendo também das opiniões de Bond sobre flora intestinal:

“O artigo era sobre novas pesquisas sobre saúde intestinal. Como era importante nutrir as bactérias do intestino, alimentar a flora e a fauna boas, os minúsculos e abundantes micróbios que viviam dentro de você, e desencorajar os maus, com uma dieta mista. Você precisava comer muita fibra, frutas e vegetais variados e alimentos fermentados como iogurte, kimchi e kombuchá.”

Não era James Bond que, segundo Ian Fleming, fumava e bebia demais, e para se manter em forma se limitava a fazer umas flexões de vez em quando? E agora querem que acredite que está preocupado com a flora intestinal?

Mas enfim, esse nem é o problema. Que fale sobre comida. Ele sempre foi de falar bastante sobre comida, o 007; embora seja esquisito vê-lo bebendo kombuchá. O problema é saber as opiniões políticas banais de todos os personagens de ficção do mundo.

Não quero saber em quem Poirot votava, se a Miss Marple era UKIP, se o boneco Falcon foi casado com a Bader Ginsburg, se o He-Man era amigo do Mandela. Parem com a politização de todas as coisas. Deixem pelo menos uns quatro ou cinco personagens de ficção ser apolíticos – os últimos apolíticos do mundo, existindo só na ficção.

E quando alguém reclamar que algum personagem fictício foi politizado pela esquerda, parem de dizer que é ridículo reclamar porque é só ficção, que é só uma boneca, que é só o cachorro mijão do Speed Racer ou algo assim.

Exatamente, é só isso, é só o cachorro mijão do Speed Racer: mantenham pelo menos o cachorro mijão do Speed Racer apolítico para sempre! A única coisa que exijo é que nossos sonhos nunca tenham Horário Eleitoral.

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  1. Sim verdade ninguem aguenta mais tanta politizaçao ...se alguem pintar uma simples flor vao dar um jeito de falar que aquilo ofende os gays ou feministas, pelamor

  2. O Bond que lidava com Dr. No, Goldfinger e Oddjob vai sobreviver, porque Dr. No, Goldfinger e Oddjob vão sobreviver. Já o Bond que lida com Trump, Le Pen e Putin provavelmente vai morrer com eles.

  3. James Bond agora não fuma nem bebe, é vegano, pansexual, panracial e transcultural. É contra o desmatamento da Amazônia e evita termos politicamente incorretos. Mas como é de extrema-esquerda, continua tendo licença para matar. E não entende porque muita gente não quer mais saber dele.

    1. Licença tbm pra mentir, corromper e ser corrompido, enganar, roubar... tudo pro bem, claro.

  4. Alexandre, no ponto, como sempre. Tive contato com os livros de Ian Fleming aos 13 anos. Li todos os livros do 007. Não lerei nada do 007 além do Ian Fleming. Eu me projetei, sim, na pele do Bond, James Bond. Esse ridículo não vou passar, não lerei nem assistirei nada além do que já li e vi. Ficarei sempre com o 007 idealizado pelo autor. Ele é tudo o que o artigo diz, com acréscimo de que não tinha muito senso de humor, a não ser quando na cama com alguma boazuda, e não era um cara bonzinho.

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