Divulgação Al Nassr FCIlustração de Cristiano Ronaldo em bandeira do Al-Nassr, clube saudita para onde o craque português se transferiu

A liga das mil e uma contratações

Fosse escrito hoje, o Livro das Mil e Uma Noites contaria a história de um rei que contrata os maiores craques do mundo para matar suas carreiras
31.08.23

O Livro das Mil e Uma Noites (Editora Globo) reúne fábulas da Antiguidade alicerçadas sobre a história de um rei que, traído pela mulher com um escravo, decide se casar com uma pretendente por dia e matá-la ao amanhecer, para “manter-se a salvo de sua perversidade e perfídia”. Fosse escrito hoje, talvez contasse a história de um rei que, frustrado pela eliminação de seu time com um lance capital decidido pelo VAR, demanda a contratação dos maiores craques do mundo para acabar com suas carreiras, uma a uma, ao apagar dos holofotes.

A lista de contratações bombásticas do futebol da Arábia Saudita para esta temporada é espantosa. Cristiano Ronaldo, Neymar e Mané não estavam exatamente no auge da carreira, mas obviamente ainda tinham mercado na Europa. Os sauditas também atraíram Mahrez, atual campeão da Champions League com o Manchester City, e Benzema, que deixou o estrelado Real Madrid após uma sequência de temporadas decidindo títulos.

Também reforçam o Sauditão o volante francês Kanté, volante base da seleção francesa, e Alex Telles e Fabinho, que atuaram pelo Brasil na Copa do Mundo, além do volante croata Brozovic, do goleiro senegalês Mendy e do meio-campo inglês Henderson, ex-Liverpool. Mas o mais chocante foi a negociação que levou a promessa espanhola Gabri Veiga do Celta de Vigo para o Al-Ahli. O alemão Toni Kroos, estrela do Real Madrid, classificou como “constrangedora” a transferência do jovem de 21 anos, que foi cortejado por clubes como Liverpool, Napoli e Manchester City antes de optar por jogar na Liga Saudita.

Kroos detalhou seu incômodo à Sports Illustrated alemã: “É uma decisão pelo dinheiro e que vai contra o futebol. É assim que começa a ficar difícil para o futebol que todos conhecemos e amamos”. Segundo o volante, “é complicado quando jogadores que estão na metade da carreira e têm qualidade para jogar nos melhores clubes da Europa decidem tomar esse caminho”. Kroos acrescentou ainda que “a falta de direitos humanos” o impediria de ir para a Arábia Saudita.

Boa parte dos jogadores que escolheram se mudar para o Oriente Médio, como o atacante francês Saint-Maximin e o zagueiro senegalês Koulibaly, não deixou apenas a Europa, mas a próspera Premier League. As cifras das contratações (foram 28 de expressão nesta temporada) são absurdas, e os acordos envolvem regalias dignas de sultões. Neymar custou 100 milhões de euros ao Al-Hilal e Cristiano Ronaldo ganha 200 milhões de euros (mais de R$ 1 bilhão) por ano do Al-Nassr. É um projeto de Estado.

Os sauditas já tinham comprado o inglês Newcastle e, em junho, o LIV Golf, da Arábia Saudita, anunciou com o americano PGA Tour a unificação mundial do golfe masculino. Agora, o reino de Mohammad bin Salman subsidia contratações futebolísticas de olho em sediar uma Copa do Mundo. O discurso oficial fala em modernizar o país, para diversificar os negócios do petróleo e atrair mais turistas, entre eles mulheres, que foram autorizadas a dirigir por lá recentemente. Os críticos do regime de Salman enxergam apenas o sportswashing, a tentativa de limpar a reputação por meio do esporte, como buscou o Catar no último Mundial.

Como mostrou a China recentemente, contudo, nem todo o dinheiro do mundo é suficiente para criar e sustentar uma liga de futebol artificialmente. A atenção atraída pelo campeonato saudita hoje estava direcionada até outro dia à liga chinesa, da qual mal se ouve falar fora do país atualmente. Na comparação com a empreitada chinesa, os sauditas têm um desafio adicional: sua população é de apenas 36 milhões de pessoas, menor do que a torcida do Flamengo. Quem vai ocupar as arquibancadas para dar alguma impressão de naturalidade às partidas?

No Livro das Mil e Uma Noites, Sahrazad (ou Sherazade) se oferece em casamento ao rei Sahriyar, dando início às histórias que o manterão entretido o bastante para poupá-la da morte — a ela e às outras mulheres que viriam a morrer nas manhãs seguintes. Antes de sua intervenção, as esposas foram mortas ao longo de três anos, durante os quais “as jovens escassearam, as mães choraram, as mulheres se irritaram e os pais e as mães começaram a rogar pragas contra o rei, queixando-se ao criador dos céus e implorando ajuda àquele que ouve as vozes e atende às preces”.

O período estrelado da Liga Saudita não deve durar o bastante para fazer tantas vítimas assim.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
  1. Bem fito para os jogadores. Estão vibrando com o dinheiro, mas não estão olhando o outro lado. Vão queimar suas caras. A comparação com o livro "Mil e uma noites" está muito bem colocada

  2. Ainda que o perfil investidor do futebol chinês (que fracassou) e do árabe seja diferente, creio (e espero) que o destino será o mesmo.

Mais notícias
Assine agora
TOPO