Foi o Putin, de novo

O presidente russo Vladimir Putin aguardou quase 24 horas para se pronunciar sobre a morte do ex-líder do grupo de mercenários Wagner, Yevgeny Prigozhin. Seu ex-chef de cozinha morreu na tarde da quarta-feira, 23 de agosto, quando o avião em que estava foi derrubado, em território russo. Putin chamou Prigozhin de “empresário talentoso”, mas o acusou de cometer “erros graves” e ter “um destino complicado”.

O destino complicado de Prigozhin foi selado depois que ele começou a enfrentar Putin este ano. No comando de unidades militares que participaram da invasão da Ucrânia, Prigozhin fez diversas reclamações sobre os ministros que comandam a “operação especial”. Em junho, ele comandou um motim, em que tanques e blindados entraram na Rússia e chegaram a 200 quilômetros de Moscou. Putin conseguiu um acordo de última hora com Prigozhin e evitou uma guerra civil na capital do país. Mas a ousadia saiu caro para seu ex-aliado. Passados dois meses, o avião em que ele estava foi abatido em pleno voo, depois de decolar de Moscou. Prigozhin com isso se soma a vários outros desafetos de Putin que foram misteriosamente eliminados. Ainda que não assuma a autoria intelectual dessas mortes, é o presidente o principal suspeito. A Rússia, nas palavras da revista The Economist, transformou-se em um estado mafioso, em que a violência assumiu o lugar da Justiça na manutenção da ordem.

O avião abatido, um Embraer Legacy 600, decolou de Moscou às 5h46, horário local, em direção a São Petersburgo. O motivo da viagem não é conhecido. Prigozhin deveria permanecer em exílio em Belarus, segundo o acordo firmado em junho. A aeronave registrou queda brusca de altitude e deixou de emitir sinal 30 minutos após a decolagem. Despencou como uma folha de árvore próximo ao vilarejo de Kuzhenkino, ao norte de Moscou. A cena foi capturada em vídeos, que mostram pelo menos uma explosão e o avião em queda vertical. Testemunhas ouviram duas explosões pouco antes.

“Este avião não caiu. Foi derrubado. Quando uma aeronave cai, ela avisa que está com uma pane e tenta consertar o problema em pleno voo. Mas o avião caiu praticamente em linha reta. O impacto foi violento. Não foi uma falha. Foi um assassinato, que aliás era altamente previsível“, disse o colunista de Crusoé Ivan Sant’Anna, piloto e especialista em aviões. “O que não sabemos é o que causou o atentado. Pode ter sido uma bomba, um drone, um míssil ou um jato.”

Um canal de Telegram associado ao Grupo Wagner afirma que o avião foi abatido por dois mísseis disparados pelo sistema de defesa antiaérea russa. Autoridades dos Estados Unidos falam em uma explosão dentro do avião, via bomba ou outro dispositivo.

Com a morte de Prigozhin, Putin livrou-se da maior ameaça ao seu poderio em quase 24 anos seguidos no comando do Kremlin. O presidente, assim, saiu  fortalecido do episódio e ainda mandou um recado poderoso para todos os demais que pensam em abreviar o seu reinado. “A lógica indica que Vladimir Putin queria que o mundo soubesse que o facínora estava eliminado”, escreve Ivan Sant’Anna nesta edição da Crusoé (leia a coluna “Marcado para morrer“).

Ainda que os membros do grupo Wagner tenham jurado vingança nas redes sociais ou ameaçado uma nova marcha contra Moscou, há dúvidas sobre qual é o poder de fogo do grupo sem seu chefe.

O Brasil sairá parcialmente chamuscado do atentado. Isso porque a Convenção de Chicago, que regula a aviação internacional, garante ao país um assento na investigação, já que o jato que caiu é um Legacy, da brasileira Embraer. Até o momento, o governo brasileiro não se manifestou sobre o caso, oficialmente ou pela imprensa. Mas é provável que haverá disputas entre a empresa e o governo russo sobre o acesso aos destroços do avião.

Além disso, o mafioso russo tem sido adulado pelos últimos presidentes brasileiros. Jair Bolsonaro o visitou em Moscou quando milhares de soldados tomavam posições ao redor da Ucrânia, em 2022. Lula lamentou a ausência de Putin na Cúpula dos Brics, que ocorreu esta semana na África do Sul. Suas declarações sobre a guerra até agora tentaram responsabilizar a Ucrânia, a Otan ou o Ocidente pelo conflito. E também entrou em cena Dilma Rousseff, nomeada presidente do Banco do Brics por Lula. Ela ofereceu empréstimos ao ditador no Kremlin e disse ser contra as sanções impostas à Rússia por causa da invasão.

A diplomacia brasileira, sob Jair Bolsonaro ou Lula, não tem dado a mínima para as questões morais, desde que o resultado final seja incomodar os Estados Unidos. Bolsonaro não gostava de Joe Biden, que bateu Donald Trump nas eleições de 2019. No caso do petismo, vale tudo para dar vazão ao seu velho antiamericanismo. Os Brics, aliás, têm sido uma ferramenta poderosa para isso e para evitar o isolamento de Putin no cenário internacional. Com apoio de Brasil, China e Índia, o presidente russo poderá seguir firme à frente do seu estado mafioso.