Arthur Lira preside sessão da Câmara dos DeputadosArthur Lira: submetido a desgaste lento e constante - Foto: Bruno Spada/Câmara dos Deputados

Quem não tem Madison vai de Lira

Fórmula do "presidencialismo de coalizão" não explica mais a política no Brasil; é preciso olhar mais para as regras do que para os personagens
11.08.23

A democracia madisoniana, que se refere a princípios de funcionamento do regime baseados nas contribuições de James Madison (1751-1836), líder federalista e quarto presidente norte-americano, diz que um governo é coisa muito séria para depender das boas intenções dos líderes. Ponderando que os homens não são anjos, definiu-se assim que as regras do jogo político devem ser de tal maneira que permitam que ambições individuais sejam abrandadas na medida em que precisarem ser negociadas com outros atores também egoisticamente interessados. Com esse quase jogo de soma zero seria possível obter, para ele, um resultado mais próximo do bem comum.

Essa discussão desloca o debate das chances de sucesso de um país da qualidade dos seus políticos para a qualidade das suas instituições. Falando claramente, com boas regras orientando os comportamentos estratégicos dos atores, é possível que políticos medíocres possam ter um bom desempenho. No sentido contrário, bons nomes formarão um péssimo governo se as instituições forem ruins.

Em declaração recente, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), destacou a importância do Centrão como o principal fator que impediu o Brasil de se tornar uma Argentina. Do seu jeito direto, até rude, ele celebrou uma característica atual do sistema político brasileiro que tem traços madisonianos, isto é, um sistema de pesos e contrapesos instalado no Brasil a partir do empoderamento do Congresso Nacional (e de quem manda nele, o Centrão) e que, hoje, exige uma revisão da literatura que estuda nosso presidencialismo.

Em linhas gerais, o núcleo duro da análise da política brasileira no sentido amplo foi construído sobre os pilares do que se convencionou chamar de “presidencialismo de coalizão”. Nele, com um universo partidário ultrafragmentado, o presidente da República se utiliza do controle do Orçamento e da distribuição de cargos para montar uma coalizão heterogênea, que precisa ser renegociada permanentemente. Em troca, recebe o controle da agenda parlamentar, que é administrada sem muitos problemas.

Essa configuração mudou principalmente a partir do governo Jair Bolsonaro. Com sua decisão de não montar uma coalizão, Bolsonaro acelerou um processo de empoderamento do Congresso via controle do Orçamento. As famosas emendas RP9 (orçamento secreto) passaram a ser usadas com boa dose de discricionariedade dos presidentes de Câmara e Senado, para montarem eles mesmos suas maiorias para votar projetos no Congresso.

O retorno de Lula marcou uma tentativa de reeditar o velho presidencialismo de coalizão. O STF ajudou o presidente e cancelou as RP9. Em uma manobra evasiva, o Congresso conseguiu amarrar metade desses recursos às emendas parlamentares obrigatórias e, assim, manteve o controle sobre os recursos, mesmo que carimbos dos presidentes do Legislativo não tivessem mais força. Para se ter uma ideia da mudança da situação, antes de o Congresso exercer tal controle sobre o Orçamento, um deputado que liberava por volta de R$ 6 milhões/ano para obras e serviços poderia ser considerado um campeão. Hoje, cada um deles tem perto de R$ 30 milhões garantidos. Isso é mais, por exemplo, do que o Ministério do Turismo tinha para gastos discricionários (R$ 19 milhões) no início do ano.

Dessa forma, apesar da intenção petista de retornar ao status quo anterior, o fato é que as condições objetivas mudaram. A principal delas é uma reversão do fluxo na praça dos Três Poderes: em vez de parlamentares cruzarem a rua para liberar recursos nos ministérios, agora são os titulares das pastas que precisam ir até a Câmara e o Senado para pedir a deputados e senadores que coloquem emendas nos seus programas. Além disso, o deputado Danilo Forte (União-CE), relator do Orçamento deste ano, pretende avançar mais, criando um cronograma para o pagamento das emendas parlamentares, retirando do Executivo o poder residual de definição do timing do gasto.

Especialistas que usavam o marco teórico do presidencialismo de coalizão agora têm o desafio de explicar o oposto. Se o controle do Executivo sobre o Congresso era a base da governabilidade, por que a inversão não gerou instabilidade? Como foi possível que, mesmo em uma situação de controle do Congresso, tenham sido aprovadas reformas estruturais historicamente difíceis? Como uma reforma gestada no governo Bolsonaro (tributária) pôde ser aprovada no governo Lula? Essa nova configuração tem garantido uma continuidade inédita da pauta legislativa? Inclusive entre governos tão distantes?

É importante se debruçar sobre essas perguntas porque elas formam expectativas, algo essencial para o planejamento econômico. Esse esforço tem que vir acompanhado de um despir de preconceitos enraizados em relação ao Congresso Nacional, construído a partir da imagem do político excessivamente local e doutor em práticas clientelísticas. Nesse sentido, a dica é olhar mais para as regras do que para o personagem e perceber que as nações avançam com o que têm, sabendo que quem não tem Madison caça com Lira.

 

Leonardo Barreto é doutor em ciência política pela UnB (Universidade de Brasília)

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  1. Excelente análise, ao que pude perceber, salvo engano, na linha do referencial teórico do livro "Por que as nações fracassam?"

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