Foto: Ricardo Stuckert/PRLula com a ministra da Saúde, Nísia Trindade; curiosamente, gente que criticava a onozioterapia está quietinha agora

Ozônio na ciência dos outros é refresco

A diferença entre bem e mal não está no que os meninos do Morro do Alemão chamam de “a coisa em si”, mas em quem defende a tal coisa
11.08.23

Minha alma mater é a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas — a célebre FFLCH — da USP. O lema da universidade diz, em latim, scientia
vinces, ou seja, “com a ciência vencerás”. Já o símbolo da faculdade, posto
sob o brasão da universidade no meu velho diploma, mostra uma
ampulheta apoiada sobre um livro aberto, sobre a qual arde uma chama. O
significado profundo, e mesmo o raso, dessa simbologia me escapa — deve
ter algo a ver com livros, tempo, luz, essas coisas —, mas no papel fica bem
bonitinho e nos transmite um certo senso de importância: somos, nós lá
formados, os portadores das letras e da lamparina dos tempos.

Mas eis: com a ciência vencerás. Bonito, hein? Dá até, se a gente quiser,
para encher o peito na hora de falar: com a ciência vencerás. Um pouco
como se a ciência fosse nossa madrinha, um canhão mais moderno nas
nossas guerras, um pistolão mais poderoso nas nossas demandas, um
craque marcando os nossos gols, uma Mulher Maravilha ou Capitã Marvel
comprando as nossas brigas na rua. Com a ciência vencerei: deixa os caras
virem para eles verem no que é que dá mexer comigo. Mas não se irrite o
amigo: brinco com a ciência porque sou amigo dela — sei que ela é uma
coisa muito boa, e correrei em defesa dela sempre que mexerem com ela na
rua. Mas uma interrogação, entretanto, existe: com qual ciência exatamente
vencerei, vencerás?

O negócio é que o lema da universidade ficaria melhor se rezasse scientiis
vinces, “com as ciências vencerás”. Porque, mais do que ciência, existem
ciências, e a triste verdade é que nem todas elas podem ser convidadas para a mesma mesa. Por exemplo, é certo que vai dar briga se você acomodar a Física junto com alguma das chamadas Ciências Ocultas: cedo ou tarde, vão entrar de tapa uma na outra. Ou se você botar a Trigonometria e a Numerologia sentadas juntas num simpósio: o clima vai pesar. Ou se você juntar a Química e a Homeopatia no mesmo sofá: o silêncio gélido se fará notar. Também não convide a Estatística e a Quiromancia para o mesmo chá. E nem sonhe em juntar a Economia e as Ciências Sociais no mesmo camarim: vão voar cacos de espelho.

Dá briga, elas não se bicam; e entretanto são, ou diz-se que são, ciências
todas, atendendo perfeitamente à definição do dicionário: ramos do
conhecimento humano. Uns ramos mais curiosos do que outros, uns ramos
mais polêmicos do que outros, pois é, mas tudo ramo. Mas atenção, o
negócio é o seguinte: ainda que tudo seja, em tese, ciência, as ciências que
cuidam das vacinas e dos antibióticos não são as mesmas que cuidam dos
benefícios do pensamento positivo ou dos efeitos dos influxos planetários
sobre o nosso destino. E é por aí que a gente entra no assunto em que quero
entrar.

Venho de saber que o jamais assaz louvado senhor presidente sancionou aí
uma lei, ou baixou uma portaria, dando OK para a aplicação livre da coisa
que leva o nome curioso de ozonioterapia. Ou seja: está liberado tratar os
males, as mazelas das pessoas tacando ozônio nelas.

Achei curiosa a liberação porque me lembro vagamente de que, nos tempos
mais árduos da pandemia, uns novidadeiros vieram defendendo um
tratamento para a Covid que envolvia a aplicação do ozônio numa área da
anatomia humana mais afeita à emissão do que à recepção de gases. Ora,
esse tratamento foi bombardeado não só pelas pessoas que a Covid
transformou em celebridades científicas da noite para o dia, mas também
por muitos médicos e cientistas bem sérios. Ouso dizer que, no caso da Covid, a ozonioterapia foi considerada inferior até mesmo à cloroquina. Pois faltam, dizem esses sérios, “evidências científicas” de que essa terapia preste para alguma coisa.

Ora, convenhamos: é curioso que o governo que veio nos libertar de uma
era de trevas, que trouxe de volta do exílio o amor e a cultura (e as ciências
entram justamente aí, na rubrica cultural), libere uma terapia que apanhou
tanto quando e porque foi proposta justamente pelos fautores das trevas que nos sufocavam. E o faça, senão sob os aplausos, ao menos sob o silêncio amistoso, fofinho, daqueles que tanto a atacaram antes.

Dá a impressão — enganosa, sem dúvida, mas que dá, dá — de que no Brasil
de hoje a diferença entre bom e mau, ou entre bem e mal, não está naquilo
que os meninos do Morro do Alemão chamam de “a coisa em si”, mas sim
em quem defende a tal coisa. Se Fulano, de quem não gostamos, diz que é
bom, então é mau; mas se quem diz que é bom é Beltrano, que amamos, aí
passa a ser mais do que bom, passa a ser ótimo.

Da minha parte, acho que, sendo tantas as ciências, deve haver alguma que
nos ajude a ajustar à nossa subjetividade uns critérios mais objetivos. Tenho
fé, uma fé aliás bastante científica, de que vamos conseguir. Algum dia.

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500
  1. O problema é que o governo do Luís Inácio Janja da Silva confundiu a "recuperação do buraco do ozônio" com "recuperação pelo ozônio no buraco". Só isso.

  2. Foi um pouco difícil de ler o Tosetto por problemas com a edição do texto, mas continuo gostando de suas conjecturas.

  3. Ciência, pra valer, entende sua limitação e... TESTA... durante a pandemia fomos instados a não testar, de um lado, e a tomar vacinas (nada contra, please) não testadas, em nome da "ciência". Ok, assumamos que não era tão "ciência" assim, mas o melhor que se podia fazer, dadas as circunstâncias...

  4. Será que alguém na Crusoé poderia ler e revisar esse texto fazendo a separação das palavras. Boa parte do texto está emendado por algum problema de formação.

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