Foto: ReproduçãoGilberto Freyre (1900-1987) usou poucas vezes o termo "democracia racial" e nunca buscou negar o racismo no país

Obra de Gilberto Freyre sobrevive ao boicote esquerdista

Relegado à solidão por não transigir com a esquerda, autor de Casa Grande & Senzala continua assombrando até aqueles que o odeiam
11.08.23

Na última edição do Premio Jabuti, que aconteceu no Theatro Municipal de São Paulo no ano passado, o grande alvo, citado diversas vezes por aqueles que tiveram a palavra no evento, foi a chamada democracia racial. A ideia que, segundo eles, diz respeito a uma suposta igualdade entre raças e é atribuída a Gilberto Freyre.

No mesmo evento, porém, a oposição retórica entre casa grande e senzala foi usada diversas vezes. De novo, uma referência que no final das contas é a Gilberto Freyre — mas eles não devem ter lembrado desse detalhe.

Primeiro de tudo: o termo democracia racial, usado poucas vezes na obra de Freyre, não é uma negação da existência do racismo no Brasil nem a afirmação de uma igualdade entre as raças no país. O termo democracia racial se refere à contribuição que o branco, o negro e o índio deram à cultura brasileira. Na verdade, Freyre, já em Casa Grande & Senzala, expõe toda a brutalidade da escravidão sem minimizá-la ou relativizá-la.

Como escreveu Bruna Frascolla, Gilberto Freyre se opunha ao racismo quando o racismo era considerado científico e era respeitado.

A ideia da democracia racial, que hoje incomoda tanto a esquerda, já teve tempos melhores. Valéria Costa e Silva, no livro A Modernidade nos Trópicos – Gilberto Freyre e os Debates em Torno do Nacional, aponta referências mais ou menos explícitas à democracia racial tanto no discurso de posse de Gilberto Gil como ministro da Cultura, em 2003, como em textos de Jorge Caldeira, o que ela entende como a insistência do fantasma de Gilberto Freyre em assombrar o Brasil. O evento do Jabuti confirma essa interpretação.

Gilberto de Mello Freyre nasceu no Recife em 1900. O ano redondo facilita memorizar a cronologia de sua vida. Morreu em 1987, também no Recife.

Freyre foi considerado o netinho retardado da avó, por sua dificuldade em aprender a ler e escrever. Foi alfabetizado em inglês. Terminou escrevendo setenta e cinco livros, traduzidos para diversas línguas ao redor do mundo.

O que chama atenção em Gilberto Freyre é a sua presença decisiva em momentos-chave da política. Durante a Revolução de 1930, Freyre teve um companheiro morto ao seu lado por um tiro que era destinado a ele. A casa de sua família foi saqueada e incendiada. Foi uma grande perda material: lá se foram joias, fotografias coloridas (uma raridade na época), pinturas, livros raros. Ele precisou se exilar na Europa, onde chegou até a passar fome, por causa da perseguição política.

Por muito tempo, Lampião ficou sem pisar em Pernambuco. O motivo: uma lei assinada por Freyre, então chefe de gabinete do governador Estácio Coimbra, que perseguia os coiteiros, fornecedores de armas e munições aos cangaceiros.

Antes de Getúlio Vargas suicidar-se, ele tinha se comunicado com Freyre: queria fazer uma ampla reforma agrária no Brasil. Quando a rainha Elizabeth 2ªI esteve no Recife, lá estava Gilberto Freyre para recêbe-la. Anos depois ele receberia o título de cavaleiro do Império Britânico.

Freyre esteve entre os primeiros autores brasileiros a citar Freud, Proust, Joyce. Introduziu no Brasil os livros que são guias de viagens. O primeiro que escreveu foi Guia Histórico e Sentimental do Recife, editado até hoje.

A grande contribuição de Gilberto Freyre ao pensamento brasileiro foram os livros Casa Grande & Senzala, Sobrados & Mucambos e Ordem & Progresso, que formam a História da Sociedade Patriarcal no Brasil, cobrindo desde a colonização até a República. A estes três volumes seria acrescentado um quarto, Jazigos & Covas Rasas, que ele não teve tempo de terminar e publicar. O livro refletiria uma visão social e arquitetônica dos ritos funerais desde a época do império.

Quando Gilberto Freyre fez 70 anos, Nelson Rodrigues escreveu um longo artigo em que dizia que a obra do pernambucano tinha “o movimento, a profundidade, a variedade do romance tolstoiano”, em referência a Guerra e Paz. E reclamava da formidável solidão a que Freyre foi renegado por não transigir com a esquerda. Com efeito, o próprio Gilberto reclamou, na famosa entrevista à Playboy, do boicote da imprensa ao seu nome, especialmente da Veja, na época dirigida por Mino Carta. Já naquela época a esquerda vinha conseguindo cada vez mais calar as vozes divergentes, um processo que não parou até hoje. Mas a obra de Freyre sobrevive a isso, assombrando até os que o odeiam.

 

Josias Teófilo é cineasta, jornalista e escritor

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  1. Nestipaiz, como sempre, admira-se o Fre(i ou y)re pernambucano errado. Esquecem do Gilberto e ficam idolatrando o tal do Paulo!

  2. O Brasil é um caso singular da miscigenação de vários povos, com poucos atritos. Basta dar uma leve comparada no resto do mundo, na Africa, Asia, Europa e Estados Unidos. Mas os esquerdistas daqui querem porque querem importar o que de pior existe, querem um "blacklivesmatter" aqui e inventam bobagens como "racismo estrutural". Criar problema onde não existe é mais fácil do que corrigir nossos outros problemas reais e de fato estruturais da nossa sociedade desigual.

  3. Maravilhoso texto e capacidade de síntese do jornalista. Parabéns! Um brinde, uma homenagem singela a esse pernambucano notável, que com arte e perspicácia retratou a alma do Brasil.

  4. Os gênios pairam acima dos idiotas. Quem não se envolve com ideologias burras percebe a diferença entre um escritor grande e outro medíocre.

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