Foto: Christophe Licoppe/Comissão Europeia/Wikimedia CommonsA premiê da Itália, Giorgia Meloni, que processa o vocalista da banda Placebo, Brian Molko, por xingá-la em um show

O poder recorre à mão forte quando está inseguro

O processo que a primeira-ministra italiana move contra o roqueiro que a chamou de fascista representa bem o terror que assola as autoridades nas periclitantes democracias liberais
11.08.23

O sujeito me chamou de nazista. Poderia tê-lo processado. Mas para quê?

O caso se deu em 2005, quando eu trabalhava em Veja. Resenhei o livro de um autor brasileiro relativamente incensado e absolutamente medíocre. Hoje, eu não escreveria a crítica dura que publiquei então — pois não escreveria crítica alguma: livros assim tão ruins merecem ser ignorados.

O escritor subiu nos cascos. Atacou-me em seu blog (todo escritor brasileiro tinha blog antes da ascensão de Facebook e Twitter). Calhou de a minha resenha ter sido publicada na página ao lado de um artigo sobre a biografia de Hitler escrita por Joachim Fest. O escritor ofendido aproveitou essa circunstância para fazer a associação: meu texto estava ao lado da foto de outro nazista, Adolf Hitler.

Vejam o requinte da coisa: Hitler era o outro nazista, o que decerto faria de mim o primeiro dos nazistas.

Na época, um amigo exaltado insistiu para que eu levasse caso à Justiça. Deixei por isso. Fora da claque do escritor melindrado, ninguém levaria a sério a sugestão de que uma crítica áspera faz de seu autor um antissemita genocida. Esse insulto leviano e tolo só confirmou o que minha resenha sugeria: o autor embaralha-se em suas escolhas vocabulares.

Lembrei-me dessa história antiga quando li, aqui mesmo em Crusoé, que Giorgia Meloni, primeira-ministra da Itália, está processando Brian Molko, vocalista da banda inglesa Placebo, por tê-la chamado de fascista e racista durante um show em Turim. Embora eu só use sapato fechado, conheço bem o tamanho das minhas sandálias: minha modesta situação não é comparável à de um chefe de governo. Houvesse buscado reparação judicial, eu estaria defendendo apenas minha reputação pessoal. Meloni defende seu governo, seu partido, seu projeto de poder. Ainda assim, acho que ela teria feito bem em seguir meu exemplo. Mais serenidade, dona Meloni!

A primeira-ministra também já processou o jornalista Roberto Saviano por ataques a sua política contrária à imigração. O autor de Gomorra, ameaçado pela máfia napolitana, agora também enfrenta a intimidação do governo de seu país. Pois é disso que se trata: Giorgia Meloni quer intimidar críticos.

O processo contra o cantor do Placebo é especialmente patético. Dos anos 1960 em diante, críticas, ataques e xingamentos a políticos tornaram-se comuns em shows de rock. É fato tão trivial que já nem constitui notícia: talvez nunca soubéssemos que Brian Molko chamou Meloni de “pedaço de m…” se a ofendida não houvesse aberto um processo contra o ofensor. Quanto a “racista” e “fascista”, são palavrinhas abusadas e desgastadas. Se os tribunais fossem acionados sempre que esses xingamentos ganham a arena pública, não teriam mais tempo para julgar homicidas e estupradores.

Lançado em 1977, o hino punk God Save the Queen já acusava o reino de Elizabeth 2ª — que celebrava seu Jubileu de Prata naquele mesmo ano — de ser um “regime fascista”. A BBC baniu a canção dos Sex Pistols de sua programação, mas isso não a impediu de chegar quase ao topo das paradas britânicas. Os integrantes da banda não foram processados. A rainha contava, afinal, com a tranquilidade de quem nunca teve relações com o fascismo. Não se pode dizer o mesmo de Meloni: seu partido, o Irmãos da Itália, tem raízes fascistas, ainda que ela as renegue. Que ela tente coibir pela força judicial quem a acuse de afinidade com Mussolini não ajuda a dissipar a justificada má fama de seu partido.

Como todo cidadão, um governante tem o direito de processar aqueles que o ofendem, difamam ou caluniam. Só que o governante não é um cidadão comum. As democracias conservam certos resquícios imperiais: leis que convertem o ataque à pessoa do primeiro ministro ou presidente em ataque à própria nação. Jair Bolsonaro adorava recorrer à Lei de Segurança Nacional — seu governo valeu-se desse recurso, por exemplo, para processar o cartunista Aroeira, que em 2020 desenhou o então presidente convertendo em suástica a cruz vermelha de um hospital. Ricardo Noblat, que reproduziu a charge em seu blog, também entrou no processo. Sensatamente, a juíza encarregada do caso mandou arquivá-lo.

O “desacato à autoridade” erigiu-se como um tabu de nossa vida democrática, como se vê na celeridade ímpar com que estão correndo as investigações sobre os suspeitos de terem assediado e agredido Alexandre de Moraes e sua família no aeroporto de Roma. Lula pronunciou-se a propósito com a aquela indignação que ele nunca demonstrou diante de bombardeios na Ucrânia e prisões políticas na Venezuela. Parece que quer fazer deste um caso exemplar no combate a “essa gente que renasceu no neofascismo colocado em prática no Brasil”. O presidente disse até que o provável agressor “é um animal selvagem, não é um ser humano”.

Então ficamos assim: governos de esquerda querem punir aqueles que consideram fascistas; governos de direita querem punir aqueles que gritam “fascista!”. Concedo que alguns dos acusados cometeram crimes efetivos e devem mesmo ser punidos — sempre, vale enfatizar, nos limites da lei (e lembro que nas democracias liberais ninguém pode ter sua humanidade revogada). Mas desconfio que, no afã de perseguir youtubers com nome de bicicleta e roqueiros que soltam o verbo em shows, revela-se o terror secreto das nossas altas autoridades, inseguras quanto à legitimidade e a representatividade do sistema que defendem. O exercício indiscriminado da força não será uma mostra de fraqueza?

 

Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor

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  1. Imaginem se fossem processar Roger Waters, q senta a pua no capitalismo e em governos capitalistas desde o início da carreira…

  2. O que nenhum governo autoritário quer é ser desmascarado. Por isso que ficam preocupados com as críticas.

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