Foto: Clint Groves/Wikimedia CommonsO avião da Varig envolvido no acidente que matou 12 em Mato Grosso em 1989, fotografado no Galeão (RJ) em 1983

CRM no mercado financeiro

Usado na aviação, procedimento incentiva profissionais a apontar falhas dos seus superiores, independentemente das diferenças hierárquicas
11.08.23

Esta semana, um amigo de muitos anos, especialista em segurança do trabalho, me ligou de uma plataforma de petróleo situada na bacia de Campos. Ele queria saber minha opinião sobre o método CRM de gestão de recursos humanos.

Antes de mais nada, deixem-me explicar o conceito da sigla, que por extenso significa Crew Resource Management (Gerenciamento de Recursos de Tripulações).

Tudo começou na aviação, só que, nesse caso, o CRM significava Cockpit Resource Management (Gerenciamento dos Recursos de uma Cabine de Comando).

O conceito é mais do que simples.

Suponhamos que um copiloto novato seja escalado para determinado voo cujo comandante é um aviador com milhares de horas de experiência e décadas de serviço na empresa.

Eis que, pouco antes da aterrissagem, o principiante percebe que seu calejado companheiro de cockpit se esqueceu de repassar uma checklist obrigatória. O certo seria ele lembrar o comandante de executar o procedimento. Mas simplesmente não tem coragem.

Esse tipo de omissão já provocou diversos incidentes, acidentes e até tragédias com centenas de vítimas fatais.

Para corrigir o problema, empresas aéreas criaram os cursos de CRM, através dos quais comandantes, copilotos e mesmo comissários de bordo participam em terra, geralmente num hotel, de simulações de situações corriqueiras (mas que implicam riscos) de voo.

Nessas oportunidades, todos são incentivados a apontar falhas, inclusive pequenas omissões, de seus superiores, independentemente das diferenças hierárquicas entre eles.

Fazem mais do que isso. Os comandantes aprendem a explicar o que pretendem fazer durante determinado procedimento de um voo e perguntar se todos concordam.

Em julho de 1997, voei do Rio para Nova York em um DC-10 da Varig. Como o comandante era meu conhecido (tiramos o brevê de piloto juntos, nos anos 1950), me convidou para ocupar o jump seat (assento de armar situado logo atrás dos pilotos) durante a decolagem, voo de subida e, muitas horas mais tarde, o voo de descida para o aeroporto Kennedy.

A tripulação do DC-10 era composta de três profissionais: comandante, primeiro-oficial e mecânico de voo (flight engineer).

Pouco antes do toque no solo, o comandante informou aos seus subordinados:
“Eu vou pousar na 13R [pista 13, cabeceira da direita], atrás daquele 747 da Ghana Airways. Se ele não sair da pista a tempo, arremeterei em direção ao marcador externo e reiniciarei os procedimentos de acordo com novas instruções da torre. Todo mundo está de acordo?”

Essa consulta já era uma consequência avançada dos cursos de CRM da Varig.

Agora imaginemos uma sala de operações de um hospital.

Durante procedimento dos mais complexos, uma instrumentadora nota que o cirurgião-chefe esqueceu uma pinça entre as dobras do intestino delgado do paciente.

Se o CRM já chegou à medicina, ela tem a obrigação de avisar ao superior sobre sua suspeita, mesmo correndo o risco de levar um fora do tipo “eu sei o que estou fazendo!”.

Voltando à plataforma de petróleo mencionada no início desta crônica, eles estão pensando em implantar programas de CRM, inclusive com representações teatrais de possíveis situações do dia a dia.

O objetivo é melhorar os índices de segurança. Mesmo algo simples como “me desculpe, mas você não prendeu seu capacete direito”. Ou “a meteorologia está prevendo a chegada de uma frente. Teremos ventos de até 70 quilômetros por hora. Ninguém tomou providências”.

Pelo que me consta, o Cockpit Resource Manegement, ou Crew Resource Manegement, ainda não chegou às trading desks do mercado de capitais.
Quando isso acontecer, dará vantagens para as instituições financeiras que o implementarem.

Fico até imaginando o Espada, trader com um quarto de século nas costas e índices de performance superlativos, ser surpreendido por um novato recém-chegado de um MBA em Nova York e com poucas semanas de trabalho:
“Eu acho que nossa posição está frágil. A Amalgamated dificilmente irá repetir o resultado do trimestre anterior. A atividade de construção civil na China está quase parando e isso logo vai se refletir nos preços dos metais básicos. A gente pelo menos podia se proteger comprando umas puts [opções de venda] ou vendendo umas calls [opções de compra] da Amalgamated”.

No terceiro e último episódio de meu livro Caixa-Preta, episódio esse ao qual dei o nome de “A noite por testemunha”, um Boeing 737-200 da Varig (foto) cumprindo, em 1989, a etapa Marabá/Belém, cujo rumo é 027º (quase norte), seguiu no rumo 270º (oeste).

Foi cair, por falta de combustível, sobre as árvores em uma floresta tropical de Mato Grosso, a inacreditáveis mil quilômetros do destino.

Pois não é que um dos passageiros, o engenheiro Epaminondas de Souza Chaves, que fazia aquela rota quase todas as semanas, informara a uma das comissárias que o avião estava voando no rumo errado?

Não sei se ela acreditou ou não. O certo é que não avisou à cabine de comando.

Doze pessoas morreram por causa disso, algumas após longas horas de padecimento.

Um forte abraço.

 

Ivan Sant’Anna é escritor e investidor

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  1. O treinamento é indispensável a todos os envolvidos para que barreiras de vaidades sejam deixadas de lado quando um alerta deve ser considerado.

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