Hans Peters / Anefo / Wikimedia CommonsO grande regente Leonard Bernstein (1918-1990), alvo da sátira de Tom Wolfe; até nossos radicais chiques são jecas

A concorrência desleal do colunismo petista

21.07.23

Quando comecei a escrever esta coluna, era para ser mais um exemplo daquilo que meus três ou quatro leitores chamam de old man yells at cloud — velho gritando com a nuvem, como no meme do Vovô Simpson. A ideia era falar da última rodada do Campeonato Brasileiro de Evasão de Privacidade no Twitter: esquerdomacho barbudinho caça cliques com a tristíssima história da doença e morte da mulher. A amante dele caça cliques dizendo ter sido iludida e revelando que ele postou como homenagens à falecida coisas que mandara antes para ela, com “exclusividade”. As redes fazem seu habitual trabalho de escavação e descobrem que a amante falava em público, com deboche, da sua condição de pegadora de casados. A mídia caça cliques postando a história dos dois — que não são figuras públicas. (De tudo isso, o que ficou de melhor foram os apelidos dos personagens: o Viúvo do Twitter e a Franjudinha Talarica.)

Desisti do assunto para não cair na roda infinita do clickbait e porque, como diria Camões, outro valor mais alto se alevantou: o texto de Hildegard Angel naquele site produtor de lixo radioativo petista, popularmente conhecido como Brasil 171, sobre a chiquérrima recepção à ex-autoexilada Marcia Tiburi é nada menos que uma obra-prima do humor brasileiro. Que o humor seja involuntário só torna tudo muito mais engraçado — embora configure concorrência desleal para nós, que não chegaremos a esse nível de hilaridade nem com MUITO esforço.

Para poupar vocês de clicarem no site original e se arriscarem a pegar alguma DST, transcrevo aqui os highlights. Começa pela foto da festa: a primeira coisa que um militante notaria é a total ausência de pessoas negras nela, mas ninguém fará isso porque a branquitude em questão é toda petista. Continua com a colunista descrevendo o prédio do evento, um “edifício com nome de príncipe e um portão de entrada que só o Palais de l’Élysées tem parecido”Palais de l’Élysée, no singular; o deslumbramento deve ter feito Hildegard pluralizar tudo. Podia também ter escrito Palácio do Eliseu, na língua plebeia que é o português).

O texto prossegue dizendo que Tiburi “descobriu sua vocação de pintora” durante seu amargo exílio no 10ème arrondissement. “Performática, ela estende os trabalhos no chão, exibe neles as marcas de suas pegadas, a vida impressa na abstração” — quando a colunista petista resolve ser poética, é ainda melhor: uma espécie de Armando Nogueira do high society. “Junto com Walfrido [Warde, advogado e anfitrião do rega-bofe], Marcia corre pela sala, escolhendo as paredes onde os quadros serão exibidos. Sobem no sofá, a tela derruba um copo de vinho, os empregados correm para limpar e secar, uma performance e tanto!” Que pitoresco o trabalho desses serviçais, que performático! Pena que não apareçam na foto da festança, mas não é difícil supor qual é a cor da pele deles.

Há mais: Hilde, como a colunista é chamada pelos íntimos, descreve o bufê (“os banquetes paulistanos são como naturezas-mortas ao nível de Caravaggio, Cézanne, Matisse, em que a beleza só perde para o sabor”) e revela que entre os múltiplos talentos de Tiburi está o de ver fantasmas, inclusive “um Orléans e Bragança (…) que não perdia a fleugma [com G mesmo] nem para assombrar”. “Se fossem encontros informais, o fantasma aristocrata aparecia de pijama listrado. Nas festas de gala, surgia em smoking de flanela marrom. Fiquei imaginando o chiquê.” E eu fiquei sabendo que aquele negócio de lençol com dois furos é roupa típica de fantasma pobre, indigno de assombrar uma Tiburi.

Tudo isso me lembrou uma das minhas reportagens favoritas de Tom Wolfe, “Radical Chic: That Party at Lenny’s”, que deu origem ao termo “radical chique”: nela, Wolfe descreve a festa promovida pelo maestro e compositor Leonard Bernstein, em seu elegantérrimo duplex na Park Avenue, para líderes dos Panteras Negras (todos servidos, observa o jornalista, por empregados sul-americanos). Arrisco dizer que Hilde escreveu o “Radical Chic” do Brasil de nosso tempo — talvez ainda melhor que o de Tom Wolfe, já que narrado em primeira pessoa e totalmente livre de restrições que afligem outros escritores, como o senso de ridículo. A colunista entregou ainda mais entretenimento de qualidade do que o Viúvo e a Franjudinha do Twitter: meus sinceros e efusivos parabéns.

***

A GOIABICE DA SEMANA

Como diria o grande narrador José Silvério, a bola estava quicando na pequena área e pedindo “me chuta, me chuta”: é óbvio que os cerumanos da internet problematizariam o filme da Barbie (interpretada por Margot Robbie, na foto) antes mesmo de ele entrar em cartaz nos cinemas. A minha problematização favorita até agora — com certeza haverá mais — apareceu em outro site petista: “Quem fica com os filhos da Barbie juíza e da Barbie médica quando elas saem para trabalhar? Com que acessórios vem a Barbie diarista ou a Barbie entregadora do iFood? Como é a dreamhouse da Barbie que mora na periferia de Recife?”, indaga o texto sobre o filme. Espero que a Mattel lance logo a Barbie Mala sem Alça, para que todo esse povo se sinta devidamente representado.

Reprodução/Warner Bros' Pictures

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
  1. Barbie mala sem alça é ótimo 😂 Hipocrisia, cinismo, elitismo brega, a alta cúpula esquerdo-caviar é um decadente banquete de hilariedades

  2. se o autor não gosta do brasil 171 (eu também não gosto), porque perder tempo com comentar? é como assistir a um canal evangélico.

  3. Hilario… Hildegard Angel é pessima. Ela agora poderia escrever sobre os abusos sofridos por Gal, pela esposa. Assim passaria do seu “colunismo jeca” para paginas policiais.

  4. Ainda bem que tive uma educação louvável, que me permitiu olhar essas bonecas de longe e desejar que suas vendas não fossem sucesso. Bom, eu desejei, mas pelo que vejo, ela continua casando de todas as formas. Mas acho que falta a Barbie Annita. Imagina se já vem até tatuada??? A Mattel vai faturar horrores. Se segura HILDE!!!

Mais notícias
Assine agora
TOPO