DivulgaçãoO escritor Itamar Vieira Júnior: a crítica literária equiparada à violência física

Por que nunca lerei os livros de Itamar Vieira Junior

Não, isto não é uma provocação: ao contrário, é uma manifestação de respeito ao escritor negro que não considera que o leitor branco esteja equipado para compreender sua obra
20.07.23

A australiana Elizabeth Costello deve sua reputação literária a A Casa da Rua Eccles. Publicado em 1969, este romance retoma os eventos de Ulisses na perspectiva de Molly Bloom, personagem que, no romance original de James Joyce, só ganha voz própria no famoso monólogo do capítulo final. Costello talvez seja mais conhecida por sua pregação em prol da vida animal e contra a indústria da carne. Ativismo e literatura não são esferas distintas: quando a escritora nos convida a compreender o sofrimento dos bichos que transformamos em bife, ela o faz a partir de um ponto de vista literário.

Isso fica claro nas conferências de Costello reunidas em A Vida dos Animais. Nessa obra, a romancista discute Como É Ser um Morcego?, ensaio do filósofo americano Thomas Nagel que ocupa um lugar eminente nas discussões sobre a natureza da consciência. Nagel diz que, como ser humano, até pode imaginar-se como um mamífero alado que se vale da ecolocalização para navegar pelo mundo. Ao fazer isso, porém, ele não está efetivamente se colocando no lugar de um morcego: ele apenas imagina como seria, para um humano, ser um morcego.

Costello descarta como irrelevante a sutil distinção traçada por Nagel. Confiante na potência da imaginação, ela se diz capaz até de ver-se com um cadáver. “Não há limite para nossa capacidade de perceber pelo pensamento o ser de outrem. Não há limite para a imaginação simpatizante”, diz ela.

A conferência é do século passado. No vocabulário de nossos dias, diríamos “imaginação empática”, não “simpatizante”. Acredito, porém, que Costello na verdade fala da imaginação ficcional. É pelo dom de produzir histórias imaginárias que o ser humano pode se imaginar como um cadáver – talvez o “defunto autor” Brás Cubas. Ou se colocar no lugar do macaco falante de Um Relato a uma Academia, conto de Kafka citado por Costello.

A imaginação ficcional nos impõe, de acordo com Costello, a obrigação ética de não impor sofrimento a criaturas com as quais podemos simpatizar – daí a imoralidade dos abatedouros. Eu mesmo sou carnívoro, mas Costello balança minhas convicções e apetites. Talvez porque já tentei e às vezes ainda tento escrever ficção (meus simpáticos leitores estão convidados a ler Adão, Vampiros e O Som do Cristal quando Quebra, contos que publiquei recentemente na revista on-line Littera 7), o argumento literário de Costello me parece mais persuasivo do que o frio utilitarismo do também australiano Peter Singer, outro paladino da liberação animal.

Subjacente ao argumento ético de Costello, há uma apologia do espírito humanista da ficção. Fantasiando outras realidades, podemos todos nos aproximar de animais – humanos ou não – que nos são estranhos, que vivem em terras estrangeiras, que levam vidas muito diferentes das nossas. Há uma liberdade virtual que só encontramos na ficção – o que talvez explique porque tantas histórias de faz-de-conta foram censuradas pelos detentores do poder.

Lamento que um novo espírito sectário hoje tente limitar essa liberdade, cercando o escritor nos quadrantes paroquiais de sua etnia ou cultura. Não estou com isso negando que origem e identidade tenham peso na criação literária. Como judeus, Saul Bellow e Philip Roth estavam bem equipados para ficcionalizar a experiência judaico-americana. Mas não se segue daí que o não-judeu esteja impedido ou seja incapaz de criar personagens judeus. O inglês Martin Amis, morto em maio, escreveu um poderoso romance sobre o Holocausto, A Zona de Interesse – e ele não era judeu.

Isso tudo vem a propósito da triste controvérsia levantada recentemente por Itamar Vieira Junior, o mais bem sucedido escritor brasileiro contemporâneo, tanto em vendas quanto em premiação e aclamação crítica. A revista Quatro Cinco Um dedicou-lhe a capa de sua edição de abril, para celebrar o lançamento de seu segundo romance, Salvar o Fogo. No conjunto de textos sobre autor e livro, havia uma crítica negativa assinada por Lígia G. Diniz, professora de Letras da UFMG. Não li o romance e, portanto, não posso concordar com a resenha, nem discordar dela. Pareceu-me um texto ponderado e bem escrito.

Escrevendo na Folha, Vieira Junior afirmou que o fato de um editor branco ter chamado uma crítica branca para falar de sua obra fazia parte de um “pacto da branquitude”, que nega espaço ao escritor negro. Também considerou racistas os termos com que a crítica teria se referido a ele no Twitter (“arrogante” virou injúria racial e ninguém me avisou!). O escritor angolano José Eduardo Agualusa respondeu, em O Globo, com um elegante artigo em defesa da liberdade da crítica. Em entrevista amiga ao Metrópoles, Vieira Júnior declarou que seu “corpo” fora vítima de violência, equiparando uma resenha ao espancamento. Também acusou Agualusa de racismo e whitesplaining.

O resumo da treta que fiz acima deixa muita coisa de fora. Importa sublinhar apenas que Vieira Júnior avança uns bons quilômetros no cerceamento à liberdade ficcional: agora não apenas um branco não pode escrever sobre personagens negros, mas também não está aparelhado para criticar um romance assinado por um negro (no entanto, ele nunca atacou resenhas positivas escritas por brancos…).

Em momento generoso da entrevista ao Metrópoles, Vieira Júnior concede que nem todo branco é racista e diz que espera ser lido por quem não é negro. Mas, a julgar pelo modo com que ele se comportou nesse episódio, a leitura branca de seus livros precisa ser reverente, talvez até expiatória. Já eu acredito que toda boa leitura, mesmo aquela realizada por quem não é versado na teoria literária, é em alguma medida crítica. Se nos é negado a priori o direito de não gostar do livro, nem vale a pena ler.

E como sou branco, só me resta entregar os pontos ao escritor negro: não lerei Torto Arado ou Salvar o Fogo.

O que eu queria mesmo era ler A Casa da Rua Eccles. Mas esse romance nunca foi publicado. Elizabeth Costello é uma criação ficcional de J. M. Coetzee.

 

Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor

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500
  1. Parabéns pela lucidez e pelas referências literárias. Para que perder tempo com quem acredita que a cor da pele justifica ser aclamado por fazer literatura de segunda categoria... prefiro ficar com Amis, Coetzee et alli. Se for para falar de literatura brasileira de verdade, que faz justiça à herança multiétnica de nossa nação, prefiro as 800 páginas de Viva o Povo Brasileiro, de João Ubaldo, ou qualquer obra de Jorge Amado, Zé Lins do Rego, etc

  2. Está passando da hora de acabar com essa disputa entre brancos e negros. Bom seria se todas e todos se aceitassem naturalmente. Bom seria se não precisássemos lembrar essas diferenças . Já estou lendo “Torto Arado “. Seria muito bom se Itamar Vieira Júnior aceitasse, naturalmente, o ponto de vista dos seus leitores sobre as suas histórias.

  3. Pauta Identitária é o cúmulo da chatice. Racista ao inverso pode, é racismo do bem. Não li e nem vou ler porque sou branco? Não. Não vou ler porque o cara é um chato

  4. Excelente texto, se o autor racializou a leitura de um livro, ele realmente não quer leitores brancos entre os seus. Está ficando perigoso ser branco!

  5. Em um texto só mostrou a incongruência de várias idéias do momento, pela contraposição: ou a ficção não deveria ser punida como se realidade fosse, ou o veganismo baseado em sofrimento animal não tem muito cabimento pra nós, onívoros, ou o consumo de produtos baseado na cor da pele do produtor não faz sentido.

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