Raylson Ribeiro/MREA coroação de Dom Pedro I, pintada por Debret: o brasileiro é hipnotizado para venerar o invenerável

A beleza de desacatar

O Brasil  só vai melhorar no dia em que parar de sentir uma reverência íntima por cretinos em posição de autoridade
20.07.23

As pessoas falam como se o Brasil fosse um país irreverente. “O país da avacalhação” dá 304 resultados no Google. “Brasileiro não leva nada a sério” dá 478.

Espera — só isso? Não soou tão impressionante quanto eu queria. Mas tenho a impressão de ter me deparado com frases desse tipo a vida inteira, e de ter visto essa ideia expressa em centenas de esquetes de humor, editoriais de jornais, tiras de quadrinhos, comentários de internet, conversas particulares e monólogos intermináveis de motoristas de aplicativo.

“O brasileiro não respeita nada”, “Você sabe como brasileiro é, não respeita nem a mãe”, “O pessoal zoa mesmo”, “O pessoal não perdoa”, etc.

Você já deve ter ouvido isso. É a imagem que temos de nós mesmos. Mas é tudo engano, óbvio, e na verdade o Brasil é um dos países mais reverentes do mundo. Produzimos mais reverência que soja. O brasileiro não zoa nada.

O brasileiro que ri agora dos rituais da monarquia não ria quando a monarquia existia de fato, não ria quando recebia um título nobiliárquico, não ria quando era convidado para tomar chá com o Imperador. Mas depois que as cerimônias monárquicas deixaram de existir por aqui, passaram a ser ridículas, obviamente — porque uma característica do brasileiro médio é que ele é incapaz de apreciar uma solenidade que não tenha o potencial de o beneficiar um dia.

Agora falam com solenidade sobre a “liturgia do cargo”. Liturgia do cargo? Mas olhe o cargo! O sujeito não é um rei tribal nas ilhas Samoa no século dezoito, descendente direto da deusa dos vulcões ou algo assim. É um reles juiz, ou algo que está ainda mais baixo na escala de coisas pífias, um presidente da República.

Suponho que o problema começa na universidade de Direito. Antes disso quem é que cai nessas papagaiadas de respeitar a autoridade, liturgia do cargo etc? Só os dois infames jotas, juristas e jornalistas, realmente acreditam nisso. Mas o aluno entra na faculdade de Direito e imediatamente cai sob o impacto hipnótico dos quadros e bustos de vetustos juristas do passado. É hipnotizado para venerar o invenerável. “Hoje vamos ter aula com o Ministro tal e tal!”, dizem os colegas, impressionados com o vulto augusto de algum jurista semi-analfabeto e claramente corrupto.

Surge nele uma necessidade de venerar para ser venerado um dia. E logo o estudante que, meros três anos atrás, estava no seu quarto vendo algum desenho do tipo South Park, e rindo, e dizendo “haha tem que zoar mesmo”, agora está achando que xingar um Alexandre de Moraes na entrada da sala VIP do aeroporto de Roma é uma abominação inaudita que merece “severas punições”.

O Brasil  só vai melhorar no dia em que parar de sentir uma reverência íntima por cretinos em posição de autoridade.

Por causa dessa reverência bocó, observem a mutação que as palavras “atacar” e “agredir” sofreram nos últimos tempos. Enquanto escrevia os parágrafos acima, por exemplo, Lula acabava de dizer isto:

“Nós precisamos punir severamente pessoas que ainda transmitem ódio, como esse cidadão que agrediu o ministro Alexandre de Moraes no aeroporto de Roma. Um cidadão desses é um animal selvagem. Não é um ser humano. Essa gente que renasceu no neofascismo tem que ser extirpada.”

Tem muita coisa para comentar aqui, mas hoje estou me concentrando no uso da palavra “agrediu”. Quando é que as pessoas (por pessoas quero dizer jornalistas e políticos) começaram a usar “agrediu” ou “atacou” em circunstâncias em que uma pessoa normal e não-histriônica teria usado “ofendeu”, “criticou” ou “xingou”?

Deve ser possível procurar nos arquivos de jornais a data em que isso começou a acontecer. Não está na minha lembrança, porque essa mudança deve ter sido tão gradual que nunca chamou a atenção para si. Mas não é estranho como isso passou a acontecer em todos os lugares, e de repente falar mal das urnas era um ataque às urnas, por exemplo, e pessoas se xingando no twitter era um ataque cibernético, e uma velha defecando no STF era um atentado?

Enfim, o brasileiro precisa de menos respeito. O brasileiro precisa de mais desacato. O brasileiro precisa entender a beleza singela do ato de desacatar.

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  1. Essa teatro deve ter sido combinado no STF: - vamos provocar indignação na população indo a Siena dar uma palestra paga por empresa farmaceutica condenada; - aí quando eu for provocado por um cidadão ofendido eu digo que fui agredido.

  2. Dava para escrever um livro sobre esse assunto. Tantas verdades sobre o tema. Inclusive sobre os estudantes de Direito que você comenta, mas não só eles. Tenho visto cada vez mais a incompetência dos jovens doutores em todas as áreas. Quero enfatizar que a palavra "Agredir" sempre significou bater em alguém, simples e objetivo! Mas nos últimos anos está desproporcional.

  3. Na escala das coisas pífias, ainda mais baixo é o sujeito descondenado por manobras jurídico-políticas de meretríssimos que cumprem missões dadas nos vários tribunais

  4. Excelente artigo. Assino em baixo. Parabéns, Alexandre Soares Silva. Pois é, estamos caminhando tragicamente para um estado ditadorial. Aguardo mais artigos lúcidos como este.

  5. Me lembra um personagem da Praça da Alegria que tratava alguém "importante" por Sua Insolência ao invés do, muitas vezes indevido, Sua Excelência. Realmente tem muita ameba que se melindra por receber crítica ou xingamento.

  6. O mundo das”excelências “ é de enojar! Acham-se melhores do que os outros sem demonstrar nenhum talento ou virtude que possibilite que o exercício de seu cargo traga algum benefício a sociedade.

  7. Aguardo sempre com ansiedade o artigo quase quinzenal do Alexandre, se me permite a intimidade não íntima. É sempre um grande prazer ler seus artigos. Só reclamo de não ser semanal.

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