Toninho Tavares/Agência BrasíliaNunca estive do lado de fora do aeroporto, mas sei de fontes fidedignas que a cidade é meio chata

O espírito de Brasília é meio brega

O tempo é quase sempre seco e pede uma cervejinha, uma bermudinha, uma camisetinha regata, um chinelo de dedo
29.06.23

Ao contrário do amigo que me lê, eu nunca estive em Brasília. Mas, por favor, não se ofenda com a insinuação de que você, amigo, frequenta aquele lugar: digo isso com candura, porque também existem, acredite, razões inocentes para se visitar a capital federal. Digamos que você goste das obras do Niemeyer, por exemplo, ou que ache lindo o plano piloto (é estranho, eu sei, mas pode ser). Ou que aprecie flanar numa urbe sem esquinas (muito, muito estranho, mas também pode ser). Ou queira ver in loco um jogo do seu time, digamos, o Taguatinga (isso é bem menos estranho do que as alternativas anteriores). Ou, Deus nos ampare, queira provar a renomada culinária local (hum). Ou, fazer o quê?, aprecie os ares. São razões boas, aceito todas. Só não se ofenda, por favor.

Em todo caso, eu menti: já estive sim em Brasília. Foi em 1997, à noite, esperando uma conexão para Belém do Pará naquele aeroporto redondo que eles têm lá. Em 1997, o amigo talvez se lembre, reinava ainda FHC, a segunda (a primeira foi o Collor) bête noire do PT, o segundo monstro maligno que opunha seus maus bofes e sentimentos ruins à onda de amor, justiça social, bondade e picanha do PT. A terceira bête foi o Temer, na época em que nós aprendemos que, para o PT, a serventia de um vice-presidente não petista é apenas impedir que um certo ponto do espaço seja preenchido com luz e ar: se ele fizer qualquer coisa além disso, essa qualquer coisa se chama golpe (lembre-se disso, chuchu – se é que o amigo me permite a ousadia de tratá-lo por chuchu). E agora estamos no fim dos tempos da quarta bête, essa que, por missão dada, está em vias de ser caçada.

Mas, como dizem lá pros lados do Jardim Ângela, tergiverso, tergiverso. O que eu queria dizer é o seguinte: nunca estive do lado de fora do aeroporto de Brasília, mas sei de fontes fidedignas que a cidade é meio chata. Não tem esquinas, dizem, do que aliás eu duvido: até um prédio, se for quadrado, tem esquinas. Mas Brasília parece que não tem. Será redonda? Ou arqueada? Também, juram os habituês, não é cidade flanável, não é hospitaleira ao caminhante sem rumo: tudo parece perto, mas fica sempre muito longe. E há nela aquele terrenão baldio imenso que atende pelo nome de Praça dos Três Poderes (peraí: serão três mesmo? Não estamos exagerando, não?) e que parece estar apenas à espera de uma construtora que levante por lá um condomínio de “alto padrão” chamado, à maneira daqui de São Paulo, Villaggio di Pastrami ou Giardino d’Abacaccio, com lazer completo e vigilância 24 horas. De mais a mais, a frequência não é das mais recomendáveis, e o tempo é quase sempre seco e pede uma cervejinha, uma bermudinha, uma camisetinha regata, um chinelo de dedo: o espírito de Brasília é meio brega.

Brega ou coisa pior. Já em 1960, o comunista Alberto Moravia, de visita, achou que ela se parecia com “um monte de bifes ensanguentados”, erguida que foi num lugar em que a natureza, “amarelada e decrépita”, “parece sofrer por existir”. Viu no Congresso uma “sopeira alucinante feita para o apetite de um gigante”, e concluiu que é uma cidade cujo gigantismo “esmaga e aniquila a figura humana”. Por fim, a chamou de “capital abstrata”, cheia de “solidão metafísica” e preenchida por uma “atmosfera ditatorial” que, de algum modo, expressava “o sentido de mistério e desorientação” do homem moderno ante os que o governam.

É duro esse julgamento? É duro. Confirmo, aceito, acato? De jeito nenhum. Porque não sou Alberto Moravia, não sou comunista, não sou italiano e, principalmente, ainda não morri. Portanto, não é bom para mim sair por aí concordando ou discordando das coisas, como se eu fosse, sei lá, livre como os árbitros do meu arbítrio. Não: para mim, Brasília fica sendo só brega mesmo.

Brasília, portanto, só se aguenta ficando do lado de fora. Você só gosta dela se não estiver nela, só a curte se puser uns quilômetros de permeio entre a sua pessoa e o concreto modernista e aviador. Daí que eu nem sonhe em culpar o excelso senhor presidente por passar tão pouco tempo por lá; eu, no lugar dele, também passaria o menos tempo que pudesse.

* * *

Consulto um jurista amigo meu (que, modesto, opta pelo anonimato) o que ele acha dessa história de “afastamento excepcional de garantias individuais”. Depois que eu o agarrei (ele teve uma vontade súbita de sair correndo, sei lá por que), eis a resposta que ele me deu:

O termo de interesse dessa expressão é “excepcional”, que aí não é usado no sentido de “ocasional, de vez em quando, em modo de exceção”, mas sim no de “ótimo, muito bom, superbacana, excelente, é por aí mesmo”.

E isso é bom ou ruim? – perguntei, confuso com o juridiquês.

Mas dessa vez não consegui segurá-lo: ele correu e, pelo que sei, está correndo até agora.

 

Orlando Tosetto Júnior é escritor

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
  1. É engraçado, porque quase todo mundo que mora aqui, não mora aqui. Em Brasília/Plano Piloto, eu digo. A maior parte da população fica nas Regiões Administrativas (antigamente Cidade Satélites). É uma cidade fria sim, a cultura local está nascendo. Todo mundo se estranha e quer voltar "pra casa" (o seu Estado de origem). A natureza é tipicamente brasileira e não desiste nunca! É um bom lugar pra viver. É segura, tem muitas oportunidades. Só não tem muito lazer, mas não se pode ter tudo.

  2. Os princípios editoriais de Crusoé apresentam o estímulo ao debate e a construção de um pensamento crítico como um dos pilares do jornalismo. Infelizmente, este artigo apresenta apenas preconceitos típicos da mídia do sudeste e estimula a falta de diálogo a partir do ponto de vista de criticar sem conhecer. Brasília é uma cidade plural com diversas leituras que podem ser analisadas criticamente a partir de argumentos reais e não somente impressões externas. Crusoé merece artigos melhores.

  3. Estive mais duma vez em Brasília a trabalho, e de fato não tem esquinas, nem calçadas e o transporte público é precaríssimo. Se não estiver lá de carro, esqueça qualquer possibilidade de se deslocar com facilidade. Além disso, é cara e andava suja e encardida. Me restringi ao plano piloto. Os que vivem na cidade e usufruem do comércio e serviços dos bairros residenciais adoram, mas não conheci essa parte.

    1. Até que BSB era brega mas para felicidade geral do aviário hoje lá pontifica madame Esbanja com suas banheiras, seus imensos sofás e camas e sua elegância de abóbora cozida que mataria de inveja a Imelda Marcos.

  4. Sobre Brasília há muita desinformação e estórias pitorescas, que não correspondem à realidade dos que aqui vivem; ao contrário do que pensa o colunista que cá nunca esteve além do aeroporto este é um lugar agradabilíssimo de se viver. Digo do chamado 'plano piloto' e arredores mais próximos porque, como em qualquer lugar do Brasil e alhures a mediocridade toma conta de tudo, i.e. todos os lugares e todas as pessoas. A invenção de Lúcio Costa é a superquadra, da qual posso fazer uma dissertação.

  5. O que ganha com isso? Brasília está acima dos três poderes. Um visão enviesada da cidade.Um desrespeito ao povo que ali habita. Uma soberba sem tamanho.Talvez fosse melhor para este senhor, a carreira de atletismo, visto que gosta de sair correndo.

  6. Imagino que falta, de uma forma geral na redação da Crusoé (e de O Antagonista também) uma falta de pautas relevantes, aliadas a um preconceito pouco inteligente e realista. Essa ideia de caracterizar Brasília com os piores adjetivos e terra de políticos da pior espécie é antiga, logo nada original (na verdade, terrivelmente batida). Busquem conhecer a vida de algumas das mais de 3 milhões de pessoas que vivem aqui. Encontrarão motivos para críticas mais profundas e originais.

  7. Certamente! O objetivo da construção de Brasília, para mim, foi manter o povo afastado, distante e alheio ao que acontece na praça dos 3 podreres. Ninguém em sã consciência iria pra lá.

  8. Já morei em Brasília em 1973, depois de 3 meses saí correndo. Voltei várias vezes de visita, principalmente porque uma parte, grande, da família mora lá. Todos que moram lá há muitos anos ou nasceram lá, ADORAM!! Deve ser aquela história do cordão umbilical, eu não tenho, fui "abortada" com 12 semanas.

  9. Ignorância, pois, Brasília nunca é nem foi apenas de políticos. Fica o convite para o escritor conhecer Taguatinga, Ceilândia, Sobradinho e abandonar a breguice de não conhecer uma das melhores capitais pra se viver do Brasil. Ou mesmo, ainda, a breguice de acusar de brega a história viva do próprio país.

  10. Também só fui à Brasília até o aeroporto, e penso igualmente Brasília é breguíssima, foi planejada para todos os brasileiros ficarem bem longe.

Mais notícias
Assine agora
TOPO