Foto: DivulgaçãoCaetano Veloso em 1968: o costume de "matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem" permanece

O jornalismo que finge que Bolsonaro ainda está no poder

30.06.23

“São a mesma juventude que vão sempre, sempre, matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem!” Esse era Caetano Veloso em 1968, gritando do palco contra o público que o vaiava durante a apresentação de “É Proibido Proibir” na final paulista do Festival Internacional da Canção. É curioso como, em 50 anos, esse embate do tropicalista com a esquerda careta se transformaria em fascinação de Caetano pelo neostalinismo hipster, mas não vem ao caso agora.

O que interessa para este texto é a frase que citei no início. Jair Bolsonaro não é exatamente o velhote inimigo que morreu ontem: teve 58 milhões de votos na eleição de 2022, tem influência no Congresso e foi, no mínimo, inspiração para os ataques golpistas do 8 de janeiro em Brasília. Mas há no Brasil um jornalismo que, pelo visto, ainda não recebeu o memorando de que, desde 1º de janeiro, o presidente se chama Luiz Inácio Lula da Silva. É um pessoal muito empenhado em ser crítico, fiscalizar o poder, speak truth to power e tal — mas, curiosamente, vem se dedicando a fazer isso mais com o rei morto do que com o rei posto.

Querem exemplos concretos? Vamos lá. Outro dia mesmo eu estava assistindo a um programa daquela emissora cujo nome não vou citar aqui, mas começa com “Globo” e termina com “News”. Com o julgamento do ex-presidente já iniciado no TSE, foi uma hora falando só de Bolsonaro; em seguida, da bolsonarista Carla Zambelli e suas ligações com o hacker Walter Delgatti Neto, o Vermelho; depois disso, mais Bolsonaro. Houve uma pausa para breves entrevistas com o relator da reforma tributária e a ministra da Saúde; na volta, tome Bolsonaro, agora acompanhado de Valdemar Costa Neto. Parece uma versão “vida real” daquela piada que se fazia com o ultrapalmeirense Roberto Avallone apresentando sua mesa-redonda (“no primeiro bloco, Palmeiras; segundo bloco, mais Palmeiras; no terceiro bloco, só Palmeiras; quarto bloco, Corinthians, São Paulo, Libertadores, seleção brasileira, vôlei, basquete, tênis e mais uma pitadinha de Palmeiras”).

Uma pessoa que tivesse entrado em coma em outubro de 2022, acordasse agora em junho e ligasse a TV nesse programa poderia jurar que o resultado do segundo turno presidencial foi Bolsonaro reeleito — aliás, coisa em que o próprio Jair e os bolsoterraplanistas devem acreditar até hoje. E não é como se nada estivesse acontecendo na Presidência de Lula: sempre há o que noticiar. Por que, então, todo esse empenho em matar o velhote inimigo já morto? Pela audiência?

Um amigo sensato o suficiente para não ser do meio jornalístico deu o que considero a melhor explicação do assunto. Espera-se do jornalismo profissional que seja “do contra”, combativo, fiscalizador (Millôr: “jornalismo é oposição, o resto é armazém de secos e molhados”), e não que funcione como assessoria de imprensa de políticos. Mas como é que esses jornalistas vão ser críticos com um presidente que eles adoram, ainda mais com ele tendo sucedido o execrável Bolsonaro? A solução, diz esse amigo, é “lutar as batalhas de anteontem”: vamos fingir que Jair ainda manda no país e descer o pau, o que também nos permitirá uma encenação de independência. A independência como performance — tão fake como a indignação performática. E ainda há o bônus, para o PT, de inflar um bicho-papão conveniente: se vocês aí não apoiarem o Lula, o Bolsonaro volta.

Escrevo este texto na quinta-feira (29), com o julgamento do ex-presidente no TSE suspenso e 3 votos a 1 a favor de sua inelegibilidade; três ministros ainda têm de votar. Na minha modestíssima opinião, um dos benefícios de tornar Bolsonaro inelegível, e portanto carta fora do baralho nos próximos oito anos, pode ser obrigar esses coleguinhas a focar no verdadeiro governo atual: como disse outro amigo, o risco de eles terem de fazer jornalismo e criticar Lula e o governo do PT cresce um pouco. Do contrário, melhor que assumam de vez o armazém de secos e molhados e a assessoria explícita para o velhote amigo.

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A GOIABICE DA SEMANA

Nunca fui simpático a essa história de gênere neutre, mas tem um pessoal da patrulha da linguagem que faria melhor se, uma vez na vida, conectasse o Tico e o Teco dentro do cérebro. Outro dia, apareceu no Instagram de Djavan um povo indignado porque o cantor e compositor estava anunciando um show com o aviso “últimes entrades!” (foto); foi necessário que gente com pelo menos dois neurônios funcionais explicasse que o show era em Barcelona e a “linguagem neutra” era apenas “últimas entradas” em catalão. Não dá para não lembrar Bob Fields: “No Brasil, a burrice tem um passado glorioso e um futuro promissor”.

Reprodução/Instagram/Djavan

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  1. No estadão percebo a burrice ideológica toda vez que um dos seus pseudo jornalistas infiltrados embarcam na canoa furada dos advogados do grupo "Prerrogativas", usando o neo adjetivo "lavajatistas" em frases pejorativas contra os heróis do Brasil, os verdadeiros patriotas, Sérgio Fernando Moro e Deltan Dallagnol. Viva a Lava Jato e fora Lula!

  2. A frase do Caetano é fantástica e serve muito bem a respeito dos assuntos “progressistas” do momento. Pois parece que não tem população subjugada no morro, guerras horrorosas pelo mundo, crianças crescendo em pobreza e violência, já que só o que importa é pronome “ neutre” e combater o criado mudo.

  3. Como é agradável ver alguém brincando com o cotidiano da política em que vivemos, e de seus influenciadores oficiais (GLOBE), mas quase tive um pane aqui com esse cartaz do Djavan. Era só o que faltava. Realmente não sei se ele caiu nessa, sabemos de outros "cantores" e "intelectuais" que evitam, pelo mal estar que criariam com seu grande mestre. O Mister L, como o Rodrigo Oliveira denomina o acéfalo.

  4. Pelo jeito é a única coisa gloriosa e promissora no Brasil que, aliás, a cada dia aumenta mais e, por isso mesmo, deveria pagar altos impostos já que somos milionários em BURRICE.

  5. Estava duvidando da inelegibilidade do bolsonaro pelas múltiplas utilidades que ele, elegível, tem para o pt e seus apoiadores. Não dou 1 segundo de audiência a essa caricatura de imprensa governista mais acho que a essa hora já devem estar se preparando para virar o disco atacando pessoas como o Zema ou Tarcísio.

  6. O comportamento do consórcio de mídia faz parte de um projeto que vai muito além do momento atual, não é apenas indigência intelectual, tem muito de ideologia na parada. Aprendi um pouco de catalão na coluna, grato.

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