Foto: ReproduçãoBjörn Andrésen como o personagem Tadzio, em 'Morte em Veneza' (1971): até hoje, modelo para animações japonesas

O espírito do tempo

02.06.23

É muito comum ouvirmos “o mundo mudou”, “os valores de nossa época são outros”, “hoje não se aceita mais tal ou qual coisa”, e por aí vai. As pessoas se referem, principalmente, a temas como sexualidade, questões sociais e de gênero. Acontece que o mundo não muda sozinho. O mundo muda por causa da ação dos homens. É assim na política e na cultura.

Não é porque vivemos na década de 2020 que somos obrigados a apoiar casamento gay, feminismo, a ideia de lugar de fala ou o que quer que seja. Filmes como Trovão Tropical, em que Robert Downey Jr. interpreta um branco que quer ser negro e faz blackface, uma prática que militantes consideram racista, não seria possível hoje em dia. O filme O Silêncio dos Inocentes, em que um homem travestido de mulher ataca e mata mulheres para tirar-lhes a pele e usar em si mesmo, motivado pela inveja, também seria impensável.

Só que isso não é resultado da evolução natural do tempo ou da história, até porque isso nem existe, mas da ação da militância identitária organizada, que influencia empresas de comunicação, estúdios, grandes corporações etc. O identitarismo é, segundo Antonio Risério, um substituto da ideia de nação em favor de grupos sociais baseados em raça ou sexualidade. Na prática, o identitarismo é uma versão da dialética marxista, que opõe burgueses e proletários, só que aplicada a raça e gênero. “A nação é uma fantasia ilusória para manter oprimidos anestesiados (…), para negar que toda nação é feita de várias nações, a dominante e as dominadas”: é assim que pensam os identitários, segundo Risério.

A origem do identitarismo é uma fusão de coisas tão distintas quanto o desconstrutivismo, a herança da luta norte-americana por direitos civis, o pensamento de Giles Deleuze, os Panteras Negras, as ideias de Michel Foucault e o discurso feminista.

Por mais que venham de fontes diversas, tais ideias têm origem no pensamento de indivíduos ou grupos sociais, não são produtos espontâneos do tempo ou da história. Na verdade, as épocas costumam comportar pensamentos distintos, até diametralmente opostos.

Em plena Guerra do Vietnã, John Milius, assumidamente de direita, viu um panfleto distribuído por hippies pacifistas em que estava escrito “nirvana now”. Millius, que era a favor da guerra, fez um roteiro invertendo a proposição. Assim nascia Apocalypse Now, dirigido por Francis Ford Coppolla. Naquela época, o que se esperava de um artista era que fosse contra a guerra — Milius era a favor e escreveu um clássico fundamental.

Artistas que hoje são consagrados estavam na contramão do seu tempo. Johann Sebastian Bach, por exemplo, foi em sua época considerado conservador – escrevia música para a igreja, do qual era mestre de capela; sua música era considerada matemática e pouco expressiva. A Paixão Segundo São Mateus, uma das grandes obras de Bach, foi reapresentada apenas em 1829 – o compositor morreu em 1750. Hoje, a música de Bach é a principal referência do barroco.

Johannes Brahms, cujas sinfonias estão entre as mais executadas do repertório sinfônico atualmente, foi muito criticado em sua época por ser considerado passadista, conservador, ao se ater ao modelo sinfônico de Beethoven. Ele se opunha à chamada “música do futuro”, que era programática e representada principalmente pelo compositor Franz Liszt. Hoje, a música que era considerada passadista é tão representante de sua época quanto a progressista — na verdade, Brahms é mais executado e conhecido que seus opositores.

Luchino Visconti demorou anos procurando o ator para interpretar Tadzio, personagem da sua adaptação do romance Morte em Veneza, de Thomas Mann. O escolhido foi Björn Andrésen, um sueco de 15 anos, que foi chamado de garoto mais bonito do mundo. O filme foi um sucesso, e Björn terminou sendo convidado para fazer comerciais e programas de TV no Japão. Lá ficaram encantados com a sua beleza, que se tornou modelo para os desenhos animados japoneses. Até hoje os desenhos animados japoneses, estilo Cavaleiros do Zodíaco, têm Björn, com seus cabelos grandes e corpo esbelto, quase feminino, como modelo. A decisão estética de um artista, Visconti, repercutiu como modelo para toda uma época.

As épocas não são criações espontâneas: elas são resultado da ação dos homens. Os grandes artistas são criadores do seu tempo, não escravos dele.

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  1. Que maravilha a última frase. Por isso não sai arte ao se espremer todo o suco da obra de um artista militante

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