Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Não somos governados por um democrata

Quando Lula legitima o regime ditatorial de Nicolás Maduro na Venezuela, ele não está "errando": está sendo coerente com o que realmente pensa
02.06.23

Lula é hiperminoritário no Parlamento. Seu partido, o PT, detém 13% da Câmara e conta com apoio leal de apenas 25% dos deputados (só 130 em 513).

Não podendo reeditar o mensalão do seu primeiro mandato, não sobra a Lula alternativa senão despejar mais dinheiro em emendas e distribuir mais cargos. Mas isso não garante a aprovação de medidas que contrariem a inclinação majoritária (como se viu na aprovação do marco temporal na Câmara na última terça-feira, 30 de maio).

Não tendo condições de mobilizar grandes massas nas ruas para pressionar os parlamentares, não lhe resta quase nada além de intensificar a atividade da imprensa chapa-branca.

A popularidade do governo Lula depende hoje dos grandes meios de comunicação simpáticos, de dois institutos de pesquisa e dos intelectuais que criam fake news (como a de que o PT e Lula são social-democratas ou de que a democracia corre grave risco se o governo não der certo).

Não tem como Lula governar com uma base parlamentar tão minoritária. Não tem. Só se manietar o Parlamento a partir de um Judiciário controlado, mas isso significaria abolir o regime democrático. Esse foi, aliás, o caminho de autocratização adotado na Venezuela.

Afinal, chegamos então na Venezuela. A fala de Lula na recepção irresponsável ao ditador Maduro (repetida no dia seguinte), foi indefensável até para os jornalistas amigos. Então o que eles fizeram? Contornaram o assunto falando que a Venezuela é importante na luta pela preservação da Amazônia e coisa e tal.

O curioso é que jornalistas de diferentes canais de TV apresentaram essa mesma justificativa, como se estivessem dublados. Sinal de que tem alguém, como diz Lula, elaborando as “narrativas” que devem ser divulgadas para mudar a opinião das pessoas. Esse alguém é o partido chamado PT, que, ao contrário do que pensam os tolos, existe e está atuante. A popularidade do governo Lula depende hoje dessa rede de contra-informação. Pode-se dizer que, afinal, aprenderam alguma coisa com Putin.

Ao legitimar o regime ditatorial da Venezuela (e defender o governo assassino de Nicolás Maduro) chamando-o de “democracia” porque promove eleições, Lula confrontou as nações democráticas e todas as sociedades que prezam os direitos humanos, abrindo uma disputa que não é capaz de ganhar. Por que ele fez isso? Várias hipóteses (não excludentes) podem ser levantadas:

1) Falta de consciência de si, arrogância e megalomania (ele “se acha” ou tem uma opinião muito favorável sobre si mesmo).

2) Já deu de barato que não conseguirá fazer um governo “extraordinário” para se notabilizar mundialmente (e ser canonizado como o salvador dos pobres) e aposta, então, em ser um dos grandes líderes desse delírio chamado Sul Global.

3) Está se lixando para as nações democráticas porque se alinhou ao eixo autocrático que reúne ditaduras e regimes eleitorais contraliberais parasitados por populismos (China, Rússia, Irã, Síria, Índia, Cuba, Venezuela, Nicarágua, Indonésia, Argentina, México, Bolívia, Hungria, Turquia etc.).

Mas, como? Aí nesse saco de gatos estão regimes ditos de esquerda e de direita (ou extrema direita). Pois é. Eventos recentes vêm desabilitando o esquema interpretativo esquerda x direita. A recente reeleição antidemocrática de Erdogan é o melhor exemplo de que não faz mais sentido tal divisão. Erdogan só venceu com o apoio econômico-financeiro das ditaduras de Putin, da Arábia Saudita e do Catar. E sua vitória foi comemorada pelas ditaduras da Venezuela, de Cuba, da Nicarágua e, no Brasil, por militantes do PT. Está na cara que a divisão que importa agora é entre autocracia (seja a dita de direita ou de esquerda) e democracia.

Maduro não é ditador da Venezuela porque é de esquerda ou comunista. Bukele não é protoditador de El Salvador porque é de direita ou capitalista. Ortega não é ditador da Nicarágua porque é de esquerda ou comunista. Erdogan não é ditador da Turquia porque é de direita ou capitalista. Todos esses são ditadores (autocratas eleitorais) porque não aceitam a democracia, são iliberais ou contraliberais. Porque — dizendo-se de esquerda ou de direita — são populistas.

Sim, existem populistas que viraram ditadores e existem populistas que (ainda) não viraram ditadores (ou talvez nunca virem). Todos, porém — dizendo-se de esquerda ou de direita —, amam de paixão eleições, mas odeiam a democracia liberal. No poder ou fora dele, na esquerda, por exemplo, Evo e Arce na Bolívia, Lula e Dilma no Brasil, Lugo no Paraguai, Fernández e Kirchner na Argentina, Funes e Cerén em El Salvador, Petro na Colômbia, Obrador no México. Na direita, Orbán na Hungria, Modi na Índia, Duterte nas Filipinas, Duda na Polônia, Salvini e Berlusconi na Itália e… Putin na Rússia.

Curioso que todos esses (ou quase) são favoráveis a Putin, não porque sejam de esquerda ou de direita, e sim porque não aceitam a democracia liberal.

Entretanto… Boric no Chile é de esquerda, mas não é populista. Lacalle Pou no Uruguai é de direita, mas não é populista. Rodrigo Chavez na Costa Rica é dito social-democrata progressista, mas não é populista. Nenhum deles tem problema com a democracia liberal. Como se sabe, Chile, Uruguai e Costa Rica são as três (únicas) democracias liberais da América Latina.

Segundo os principais institutos que monitoram a democracia no mundo, o Brasil é uma democracia. Para o V-Dem (da Universidade de Gotemburgo), não é uma democracia liberal, mas é uma democracia eleitoral. Para a The Economist Intelligence Unit, não é uma democracia plena, mas uma democracia defeituosa. Para a Freedom House, é um regime livre (e, portanto, uma democracia). Isso, entretanto, diz respeito ao regime político, não ao governante.

O regime brasileiro manteve o mesmo status democrático quando Bolsonaro estava no governo (embora ele, Bolsonaro, não seja um democrata e, como populista-autoritário que é, seja iliberal).

E agora, com Lula no governo, o Brasil continua sendo uma democracia (embora Lula não seja uma pessoa convertida à democracia e, como neopopulista ou populista de esquerda que é, seja contraliberal).

É justamente por isso que Lula elogia ditadores, ou seja, líderes populistas que não se dão bem com a democracia liberal. É a mesma razão pela qual Lula tem tanta dificuldade de apoiar a resistência ucraniana contra o ditador Putin. E é também por isso que Lula não se alinha à coalizão das democracias liberais articulada para resistir ao avanço do eixo autocrático. Pelo contrário, Lula continua achando que os principais inimigos do seu projeto são os EUA (uma democracia liberal) e a União Europeia (um conjunto de democracias liberais) —repetindo o discurso de Putin e Xi Jinping de que os americanos são imperialistas e os europeus, neocolonialistas.

Então, quando Lula legitima o regime ditatorial de Maduro, ele não está “errando”. Está sendo coerente com o que realmente pensa. Se Lula não tivesse sérios problemas com a democracia liberal, não se comportaria como vem se comportando.

Mas o fato, preocupante (e, poder-se-ia mesmo dizer, apavorante) é que não há mais como negar que não somos governados por um democrata.

Augusto de Franco é escritor

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  1. A maior mentira contada durante a campanha foi a de que Lula era a escolha de quem desejava salvar a democracia. Quem acompanhou seus 2 primeiros mandatos sabia que quem corrói e corrompe os outros poderes não pode nunca ser salvaguarda para a democracia. Que haja gente surpresa com a atitude iliberal de Lula ou é burro, distraído ou mentiroso.

  2. Excelente e lúcido texto!!! Cumprimentos, aplausos e obrigada por ele, AUGUSTO DE FRANCO. Finalmente as coisas colocadas clara e realisticamente como são: absolutamente juntas e indissociavelmente misturadas.

  3. Gostei muito do texto, bate integralmente com o que penso e digo. Pena que os brasileiros (e brasileiras) quase que só dão atenção (e entendam) de futebol, novelas e BBB (e assemelhados). Um percentual para lá de preocupante de analfabetos, analfabetos funcionais na maioria, incapazes de lerem e entenderem um livro ou uma reportagem mais longa.

  4. O problema de luladrão é com o álcool. Desejo incontrolável de beber, de viajar, de discursar e ouvir a própria voz. Mas às custas do contribuinte. É só um pelego populista

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