Foto: Ollie Atkins/White HouseNixon em campanha, em 1968; presidente dos EUA de 1969 a 1974 popularizou o uso do termo "maioria silenciosa"

As minorias estridentes e o país silenciado

Popularizada pelo mais caviloso dos presidentes americanos, a expressão “maioria silenciosa” talvez já não tenha mais sentido agora que todos fazem barulho nas redes sociais
02.06.23

Richard Nixon não foi o primeiro a falar em “maioria silenciosa”. Mas coube ao presidente que renunciaria em meio ao escândalo de Watergate conferir às duas palavras o sentido político com que as entendemos hoje. Ao final do discurso de 3 de novembro de 1969, no qual expôs seu plano para uma retirada gradual e negociada das tropas americanas que então combatiam no Vietnã, Nixon pediu o apoio da “grande maioria silenciosa”. “Vamos nos unir pela paz. Vamos nos unir contra a derrota”, conclamou. Momentos antes, ele afirmara que os Estados Unidos não teriam futuro como “nação livre” se prevalecesse a vontade da “minoria estridente” que pregava o encerramento imediato e incondicional da guerra na Ásia.

Desde então, tornou-se clichê a ideia de que a maioria conservadora, sempre preocupada com os boletos e a hipoteca da casa, não tem tempo ou disposição para proclamar seus pontos de vista nas ruas, enquanto uma minúscula militância radical faz barulho em passeatas, protestos, manifestações, ocupações e entrevistas à imprensa esquerdista. Nixon, porém, não traçou exatamente essa caricatura no seu discurso mais famoso. Certas coisas que ele disse então não seriam palatáveis para a direita populista que conhecemos hoje.

O centenário Henry Kissinger, homem forte da política externa de Nixon, citou a passagem sobre a “maioria silenciosa” em Liderança, que resenhei há pouco no Brazil Journal. No livro, o ex-secretário de Estado diz que esse foi o “discurso mais eloquente” de seu antigo chefe. Há gritantes omissões no resumo que Nixon fez da Guerra do Vietnã: nada foi dito sobre napalm, agente laranja, My Lai, bombardeio do Camboja. Nem por isso Kissinger está errado: o discurso é muito bem construído. Sua inegável eloquência reside não só no famoso apelo à maioria, mas também no esforço de conversar com a minoria.

Nixon dirigiu-se aos pacifistas: “Eu respeito seu idealismo. Eu compartilho de seu desejo de paz”. Esse tom conciliatório não seria a marca de seu governo. Em maio de 1970, dias depois de a Guarda Nacional ter disparado contra manifestantes desarmados em uma universidade em Ohio, matando quatro estudantes e ferindo nove, Nixon chamou de “vagabundos” aqueles que protestavam contra a guerra. O insulto rasteiro não era estranho a seu estilo. Conversas gravadas no Salão Oval revelam um presidente boca-suja. Kissinger diz que, ao tomar conhecimento dessas gravações, ficou surpreso com a torrente de “profanidades” ditas por seu antigo chefe. Na lembrança de Kissinger, “Nixon falava de forma educada e escrupulosa”.

Não me parece que Nixon fosse um homem educado e escrupuloso, mas ele pelo menos soube simular essas qualidades em novembro de 1969. Sua hipocrisia ainda está alguns patamares acima do discurso político médio que ouvimos hoje. O movimento retórico de reconhecer que o adversário tem suas razões para pensar da forma que pensa não tem mais lugar na guerra cultural. O combatente ideológico que ousa reconhecer boa-fé no campo oposto será coberto pelo estigma da traição. O mandamento é jamais conversar com o outro lado: lá só há ladrões e golpistas, radicais e extremistas, pedófilos e genocidas, comunistas e fascistas.

A maioria silenciosa ainda está entre nós? Bem, certamente existe, no cenário americano, um contingente razoável de cidadãos que rejeitam tanto a truculência trumpista quanto a histeria woke, assim como no Brasil haverá outros tantos que não cerram fileiras nem com o bolsonarismo nem com o lulismo. Mas é difícil discernir vozes moderadas desde que Facebook e Twitter convidaram as maiorias a trocar o silêncio pela estridência.

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Fabio Porchat capitulou à estridência. Na semana passada, elogiei o humorista do Porta dos Fundos por ter criticado, no Twitter, a censura judicial a Léo Lins. Desde então, ele apagou os dois tuítes que publicara sobre o tema. No vídeo que postou no Instagram para justificar a autocensura, ele afirma que nunca quis “defender o humor racista”: “Falei de forma rasa, precipitada, confusa. Abri margem para validar coisas que não concordo”.

Essa conversa é puro soporífero bovino. Ora, ao reconhecer méritos em um discurso de Nixon sobre o Vietnã, o presente artigo talvez tenha “aberto margem” para pensarem que o autor gosta do cheiro de napalm pela manhã. Mas só é assim porque a burrice e a má-fé leem textos para encontrar o que no texto não se encontra. Porchat havia sido muito claro em seus tuítes: ele não gosta do tipo de humor que Lins faz, mas ao mesmo temo considera que não se pode proibir uma piada só porque ela é tida como ofensiva.

Nos comentários ao vídeo no Instagram, há uma turma grande perguntando se Porchat vai se desculpar pelas “ofensas” do Porta dos Fundos aos cristãos. Carolas de outra fé acusam o humorista de reincidir na mais grave das heresias: a defesa da liberdade de expressão.

No vídeo, Porchat pondera que figuras públicas com séquitos numerosos nas redes sociais devem se manifestar sempre com muita responsabilidade. Belo princípio. Ele só esquece de uma responsabilidade fundamental: não se deixar intimidar pela estridência, venha ela da maioria ou das minorias.

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Em campanha, Lula vendeu-se como o presidente que pacificaria o país. Eleito, nunca estendeu qualquer reconhecimento à minoria muito ruidosa (mas não tão minoritária…) que votou no candidato derrotado. Em compensação, ele recebe o ditador venezuelano com honras de chefe de Estado e ainda sugere a esse “companheiro” que construa uma nova “narrativa” sobre seu regime de terror e miséria.

Lula só omite que, nos limites do país sob seu tacão truculento, Nicolás Maduro já “controla as narrativas”, suprimindo aquelas que lhe são desfavoráveis. De quebra, ele também controla Judiciário e Legislativo.

Na Venezuela, a maioria não é silenciosa: é silenciada.

Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor

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  1. Nas redes sociais o que dá dinheiro é o absurdo, não a moderação e a responsabilidade. E o mundo vai indo por esse caminho… não tem como chegar a um bom lugar.

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