Foto: Reprodução InternetApostas esportivas: sem transparência, pode haver descrédito dos torcedores

Precisamos de uma CVM do futebol

Enquanto os negócios na Bolsa de Valores se moralizaram nas últimas décadas, o futebol se deteriorou ao se transformar, para muitos, em jogo de azar
18.05.23

Nas últimas semanas, um assunto que tem sobressaído na imprensa e na televisão é a corrupção que atingiu o futebol brasileiro, mais precisamente no setor de apostas.

Basta assistir a uma partida para se dar conta de que essa atividade (me refiro aos sites e casas de apostas) tem crescido muito.

Boa parte das equipes brasileiras é patrocinada por empresas desse tipo de jogo, assim como acontece nas placas publicitárias que cercam os gramados.

Desde 1946, quando, aos seis anos de idade, vi meu time, o Fluminense, ser campeão carioca, acompanho os jogos não só do Flu como dos adversários, além de assistir partidas da Premier League inglesa.

Portanto, se tenho 65 anos de mercado financeiro, de futebol já lá se vão 77 anos ininterruptos de convívio com o violento esporte bretão (com minhas desculpas pelo clichê).

Antes, eu frequentava os estádios. Agora, com as deficiências físicas decorrentes da idade (acabo de completar 83) prefiro (e me acostumei a) assistir pela televisão.

Entre 1969 e 1977, compareci a todos (e por “todos”, significo “todos”) os jogos do Fluminense, incluindo as cidades brasileiras mais distantes, além de partidas em Montevidéu, Caracas, Huelva (Espanha), Sarajevo (antiga Iugoslávia), Burundi, Botswana, Lesoto, estes últimos em uma excursão do tricolor à África.

De tanto viajar no mesmo avião dos jogadores, técnicos e dirigentes, acabei me tornando presença certa na delegação e uma espécie de diretor informal do time.

Informal porque não era conselheiro, e nem mesmo sócio, do Flu. Mas, com o passar do tempo, eles começaram a me convidar para dirigir a delegação.

Cheguei mesmo a fazer, a pedido de alguns técnicos, preleções no vestiário durante o intervalo das partidas e a assisti-las do banco de reservas.

Se havia corrupção naquela época, não testemunhei nenhuma, embora tenha ouvido falar de alguns episódios suspeitos, como o do goleiro que foi expulso prematuramente no início da partida decisiva de um campeonato carioca, de outro goleiro que fez de tudo para seu time perder e do atacante do interior de São Paulo que também provocou sua expulsão prematura.

Mas eram casos isolados.

Por outro lado, no mercado financeiro, onde eu trabalhava, corrupção era a regra do jogo.

Insider information tornara-se um procedimento tão comum que os outsiders aderiam ou mudavam de profissão.

Entre outros exemplos, houve uma maxidesvalorização do cruzeiro tão espalhada de boca a boca que a cotação das ORTNs (Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional) cambiais fecharam exatamente no preço (em nível de centésimo de centavo) correspondente à maxi.

Todos (eu escrevi “todos”) os fundos de pensão (que na época chamávamos de “fundações”) das estatais se envolviam em negócios escusos.

Não é à toa que praticamente não houve nenhum que sobrevivesse sem que a empresa (de cujos fundos seus funcionários deveriam se beneficia) tivesse de transferir recursos de sua tesouraria para evitar que a “fundação” quebrasse.

Grande parte dos negócios nos pregões das bolsas era combinada entre os operadores.

“Eu te vendo 50 mil Chumbinho a 16 e você me vende 30 mil Amalgamated a 17.” Isso era acertado junto ao balcão do cafezinho da Bolsa.

Às vezes, os clientes menores (aos quais as corretoras não davam a menor importância) só recebiam o resultado de suas ordens no final do dia ou até mesmo na manhã seguinte.

Compravam caro e vendiam barato.

No open market, a coisa não era muito diferente. Operadores de mesa combinavam roubos nos quais suas próprias instituições saíam perdendo.

Não havia nem o pudor do disfarce. A palavra era “roubo” mesmo.

“Vamos armar um roubo para amanhã?”, um perguntava ao outro na maior sem-cerimônia.

Pois bem. Não vou ser ingênuo a ponto de dizer que no mercado atual todo mundo é honesto.

Mas, sob severa vigilância da CVM (Comissão de Valores Mobiliários) os negócios em bolsa (de ações e derivativos) se moralizaram.

Se você quer comprar 100 ações da Chumbinho e o Itaú vem atrás para comprar um milhão, sua ordem é executada na frente porque chegou primeiro.

Ao divulgar seus balanços, a empresa de capital aberto é obrigada a revelar todos os seus prognósticos negativos, por mais sombrios que sejam.

Isso é uma cópia do que se faz nos Estados Unidos, cujo princípio da Securities and Exchange Commission é “full and fair disclosure” (transparência justa e total).

Enquanto isso, o futebol se deteriorou ao se transformar, para muitos, em jogo de azar.

Importante salientar que as grandes prejudicadas são as empresas de apostas, sendo favorecidos os jogadores que participam das mutretas e os agentes que os intermediam.

“Quer ganhar 100 mil após a partida? Cometa um pênalti no primeiro tempo. Adianto 10 mil agora; os outros 90 mil se o trato for cumprido.”

Chegou a hora de criarmos uma CVM do futebol. Caso contrário, haverá descrédito dos torcedores.

Se um jogador comete pênalti, ou leva cartão amarelo, logo ficará sob suspeita de sua própria torcida.

Isso seria o início do fim do futebol como o conhecemos.

 

Ivan Sant’Anna é escritor e investidor

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