Salão Internacional do AutomóvelLula no Salão Internacional do Automóvel, em 2010

Governo engata a marcha a ré

Tentativas de produzir um carro popular ou de baixar os preços dos combustíveis fósseis vão na direção contrária do mundo desenvolvido
18.05.23

Ao ressuscitar a incerteza sobre preços de combustíveis e a ideia de subsidiar carros populares, o governo engata de vez a marcha a ré, rumo ao que já deu e sempre dará errado por aqui.

Situada ao norte da França, a comuna de Lesdain é uma região de meros 8 quilômetros quadrados, pouco menor que o “condado da Faria Lima” (com 9,9 quilômetros quadrados do bairro do Itaim Bibi). Ao contrário do fictício condado brasileiro, porém, Lesdain possui um conde, justamente seu habitante mais famoso.

O conde e a condessa de Lesdain passaram para a história por suas aventuras. Sua lua de mel tornou-se um livro narrando os 17 meses nos quais atravessaram o deserto de Gobi e o Tibet. Uma espécie de casal Marco Polo moderno.

No Brasil, o conde encarou a estrada e os 700 km que separam o Rio de Janeiro de São Paulo na primeira viagem de automóveis feita no país. Foram ao todo 36 dias no ano de 1908.

O feito rendeu manchetes nos principais jornais da República, ajudando a fomentar uma ainda incipiente paixão do brasileiro pelo automóvel.

O automóvel havia chegado ao Brasil 10 anos antes, em 1898, pertencendo ao também conde Francisco Matarazzo, um dos brasileiros mais ricos de todos os tempos, com uma fortuna estimada em 20 bilhões de dólares.

Toda essa pompa e circunstâncias dos automóveis em seus primórdios começariam a mudar justamente em 1908. Foi neste ano que Henry Ford lançou o seu Model T.

As primeiras 10 mil unidades fabricadas naquele ano custavam cerca de 850 dólares (26 mil dólares em valores de hoje). Quase duas décadas depois, em 1925, o preço havia caído para 260 dólares (4,4 mil dólares em valores de hoje).

O Ford T foi de fato o primeiro “carro econômico” da história.

Tal façanha, porém, levaria décadas para chegar ao Brasil, se é que podemos dizer que um dia chegou.

Apesar do fascínio do brasileiro pelos automóveis, carros por aqui nunca foram exatamente acessíveis. Para piorar, na busca por preços menores, passamos a produzir veículos que viriam a ser apelidado de carroças pelo então presidente Fernando Collor (no que se diz, um discurso escrito por Gustavo Franco e proposto a Mário Covas, mas que esse não teria topado).

Ainda assim, mesmo após a abertura e o choque de tecnologia na nossa produção, soaria falso dizer que o Brasil tenha atingido algo próximo de um carro popular.

Ao contrário, tivemos apenas uma aula sobre ineficiência. Uma aula cara, regada a subsídios.

Estima-se que entre 2003 e 2019 o país tenha despejado 54 bilhões de reais em subsídios para o setor automotivo. Tal valor, em contexto, implica em um subsídios de 5,4 bilhões de reais em 2019, ou 80% de toda a verba do Ministério da Ciência e Tecnologia.

Ignoramos os preceitos que fizeram Japão e Coreia do Sul, países mais pobres do que o Brasil em 1950 e 1970, respectivamente, desafiarem os países ricos.

Por lá, o subsídio se centrou em indústrias que conseguiam produzir e exportar seus veículos. Na prática, isso significa que tais indústrias foram obrigadas a se tornar mais eficientes para receber os incentivos.

No Brasil, ao contrário, cercamos o país e demos um mercado consumidor de 200 milhões de “patos” para a indústria automotiva explorar.

É temerário, portanto, que o governo e o atual presidente da República, se utilizem de sentimentalismo para fomentar, outra vez, incentivos ao setor automotivo.

Trata-se de injetar recursos para fomentar uma indústria que, em poucos anos, estará totalmente mudada no mundo.

Convém destacar, claro, que a decisão não representa nenhuma ingenuidade do governo. Nossos governantes amam a indústria automotiva.

E as razões para isso são um tanto quanto óbvias. Em primeiro lugar, falamos aqui de investimentos bilionários. O mercado de veículos no Brasil movimenta ao menos 300 bilhões de reais ao ano.

Em segundo lugar, os veículos demandam serviços. Trata-se de uma indústria que faz girar a economia. Primeiro, fomenta o crédito, depois a indústria e as empresas que produzem as peças, depois a demanda por combustíveis e assim por diante.

Considere que apenas o IPVA e os impostos sobre combustíveis  representam cerca de 22% da arrecadação dos Estados.

Em suma, a cada 5 reais que os governos estaduais arrecadam, 1 real está relacionado aos veículos.

Isso, claro, significa que o governo tem um grande incentivo para fazer você comprar um veículo novo. E do lado oposto, vê no transporte coletivo uma despesa.

Passagens de ônibus demandam subsídios constantes. Linhas de metrô custam até 300 milhões de reais por quilômetro, enquanto os veículos são uma máquina de gerar impostos (além de contratos viários com empreiteiras).

Para piorar a situação, também na mesma toada, o governo engatou uma segunda marcha a ré, mudando a política de preços da Petrobras.

Na prática, o mesmo governo que alardeava o etanol como combustível do futuro nos idos de 2008, volta a abrir as portas para uma política de preços artificiais em combustíveis fósseis.

É sabido que a Petrobras arcou com prejuízos de 200 bilhões de reais arcando com o congelamento de preços. Um detalhe pouco mencionado, porém, é a destruição do setor sucroalcooleiro.

Destruímos uma indústria com resultados ambientalmente melhores do que os carros elétricos europeus e americanos (com fontes de energia poluentes), para fraudar a inflação.

Essa escolha já teve participação em dar ao país sua Grande Depressão de 2014-2016, e se não se repetir agora (o que torcemos para não ocorrer), ao menos terá criado instabilidade desnecessária.

São, ambas as medidas, um retrocesso e uma aposta em reviver o passado, nada glorioso.

Ou como dizia o historiador francês Jacques Godechot (em uma frase erroneamente atribuída a Talleyrand), “eles não aprenderam nada, não esqueceram de nada”.

Por fim, convém destacar a diferença e fazer justiça. Godechot se referia ao rei Luís XVIII no seu retorno à França em 1815. Já por aqui, falamos do Rei Luíz Inácio, o “Deus Sol“.

 

Felippe Hermes é jornalista

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  1. Está completamente nas mãos do Governo a criação do carro popular. Basta apenas e simplesmente que se baixe os impostos exorbitantes que se paga quando se compra um automóvel.

  2. Andando para trás mesmo. O mundo pensando em novas tecnologias para substituir o petróleo, buscar novos meios de transporte público etc. Ainda que haja problemas não resolvidos com os caros elétricos ainda tem, já são uma tendência nas grandes indústrias automobilísticas. Aqui em Curitiba já entrou em teste o ônibus elétrico. Mas eu preciso de carro pelo trabalho, e abasteço meu carro com etanol, independente do preço, mas penso na questão ambiental.

  3. Alô governo que tal pedir a Ford prá voltar a produzir o velho T-1908 aquele que Henri Ford projetou para vender a seus operários? Ou o BNDES financiar uma fábrica de charretes puxadas por a gente o que ensejaria milhares de empregos a jegues votantes.

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