DivulgaçãoEm nenhum material de divulgação de O Guarani são informadas as alterações feitas por Ailton Krenak e Cibele Forjaz

A ópera feita por quem odeia ópera

Na adaptação identitária e "decolonial" de O Guarani, de Carlos Gomes, os elementos indígenas não são nada mais que um ruído
18.05.23

Logo que o Theatro Municipal de São Paulo anunciou a montagem de O Guarani, a ópera de Carlos Gomes, com a concepção de Ailton Krenak, uma controvérsia programada veio à tona. Programada porque foi feita para a aprovação de uns e desaprovação de outros — é assim que se “provoca” o debate hoje em dia.

O que mais chama a atenção é que o líder indigenista Krenak se refere à ópera, cuja montagem foi convidado a conceber, apenas em termos totalmente negativos. “Peri é uma caricatura de índio ridícula, a que estamos sujeitos há 150 anos”, diz ele. “Os povos originários se sentem ofendidos pela narrativa da ópera. E ela traz um dano cultural enorme por ter sido perpetuada acriticamente por tanto tempo”.

Gostaria muito de saber exatamente qual dano cultural a ópera mais importante do repertório lírico do país produziu. Bem dizia Stanley Kubrick: “Nenhuma obra de arte jamais causou prejuízo social, apesar de muitos prejuízos sociais terem sido causados por aqueles que tentam proteger a sociedade contra obras de arte que consideram perigosas“.

E mais: se a ópera tem todos esses defeitos, por que montá-la, então? Por que não escolheu outra ópera? Ou então encomendou uma de acordo com o credo ambientalista e identitário do qual ele e a diretora de cena, Cibele Forjaz, compartilham?

O diretor André Heller-Lopes declarou à Folha que “não há mesa espírita que faça Carlos Gomes descer e pedir desculpas por ser um homem do seu tempo”. Só que Carlos Gomes, como os grandes artistas, não foi só um homem do seu tempo, ele foi um dos criadores do seu tempo. As épocas não são criações espontâneas, elas são resultado da ação dos homens.

O resultado foi uma montagem identitária e decolonial – ironicamente eles usam como no inglês, em português é simplesmente descolonial –  da ópera baseada no romance de José de Alencar. Os balés foram retirados e no lugar deles foram colocados cantos indígenas, os índios entram e saem do palco durante toda a apresentação, sem entretanto se integrar ao coro lírico e aos cantores – eles ficaram totalmente deslocados. Os protagonistas, Ceci e Peri, tem seus duplos indígenas no palco, espécie de sombras que os rondam durante todo a apresentação.

A ópera começa com uma tela com uma projeção sob o palco, ali um índio de camiseta preta faz desenhos coloridos. O ridículo da situação já começa aí: os elementos indígenas são completamente alheios ao drama da ópera e à música, não são nada mais que um ruído naquela montagem.

Já a Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal, regida por Roberto Minczuk, fez um bom trabalho, assim como os cantores líricos – a crítica foi unânime em apontar isso. Mas esse detalhe ressalta ainda mais o fracasso da montagem: o palco era, a cada cena, entulhado com elementos estranhos à época em que a história se passa e conflitantes entre si: de repente, no meio de uma batalha, descem redes do teto, uma série de projeções com imagens históricas de populações indígenas são projetadas em pontos distintos, os câmeras entram e saem do palco, e a imagem que eles captam é projetada no mesmo palco – estilo Teatro Oficina. De repente aparece uma escada de ferro e um pino gigante que sobe e desce.

O descuido era geral: as projeções estavam no formato errado, muitas imagens estavam pixeladas por não ter qualidade para serem ampliada naquele tamanho. Do meu lado (eu fui no dia 17), a equipe de filmagem falava alto durante toda a apresentação, um dos câmeras estava revoltado por não ter seu trabalho devidamente reconhecido. O desleixo estava em tudo.

Por fim, uma cantora indígena veio cantando com uma voz estridente até o palco, junto com outros índios – o som amplificado pelo microfone causou um terrível contraste com a ópera e o desconforto foi sentido em toda a plateia. Por fim, os indígenas abriram um grande faixa em favor de demarcação de terras.

O mais surpreendente é que em nenhum material de divulgação da montagem do Theatro Municipal são informadas as alterações feitas por Ailton Krenak e Cibele Forjaz. Tanto o corte dos balés quanto o acréscimo de cantos indígenas são alterações significativas. Não se trata da ópera O Guarani de Carlos Gomes, mas de uma adaptação da ópera feita por Ailton Krenak – e assim deveria ter sido divulgado. O resumo da ópera no site do Theatro também não informa as alterações, o que é muito grave. O correto é informar desde o título que se trata de uma adaptação, só que pouca gente sairia de casa para ver a versão do Krenak da ópera de Carlos Gomes – muito menos, se soubessem que ao final o palco é utilizado para uma manifestação de caráter político. O público pagante – que desembolsou até 158 reais por um ingresso – tem o direito de saber que vai ver uma obra alterada. Trata-se de propaganda enganosa, o que é crime segundo o Código de Defesa do Consumidor. É ainda mais grave por se tratar de uma instituição financiada com recursos públicos, que é o Theatro Muncipal de São Paulo.

 

Josias Teófilo é cineasta, escritor e jornalista

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    1. São poucas as operas apresentadas no periodo de um ano,elas tem um publico cativo que aguarda ansioso e quer ver a apresentação tradicional.Ha o resto do ano para outros tipos de espetaculos, não precisa deformar as operas

  1. Inacreditável! Ainda bem que eu nasci no século passado e foi possível ler as obras de José de Alencar e ouvir a ópera de Carlos Gomes.

  2. Não vi, mas deve ter sido uma peça típica de Tupiniquins bagunçados. E nisso está coerente com nosso Brasil. Diferente foi Carlos Gomes.

  3. Com as críticas negativas, é certo que os responsáveis pela DESmontagem vão dizer que é uma visão colonialista, eurocêntrica, etc.

  4. Isso me cheira a Ditadura, onde se define o que o evento deve representar. E, claro, sempre traz mensagens do governo. Até hoje já vi coisas semelhanças acontecerem na Coreia do Norte e China. Pior, o povo tem que aplaudir no final, senão sofrerá consequências. Porém, nota-se que não existem falhas na produção e execução do evento. Já no Brasil parece que não acertaram nem problemas técnicos. Coitado dos que foram assistir

  5. A desfiguração de obras de arte como forma de protesto apenas expõe a incapacidade artística do seu promotor. Brilhante seria criar arte nova sob a perspectiva do outrora humilhado ou mal representado. Mas, para o incompetente, a polémica vã da canibalização da obra alheia vale mais do que a criação de algo novo, belo e artisticamente único.

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