Flickr/MiguelQuitanda em Buenos Aires: inflação de 104% em 12 meses

Por que você deveria prestar atenção na eleição argentina

O país precisa ter condições de importar produtos para evitar uma espiral inflacionária. Sem dólares, as cotações de produtos sobem e a pobreza aumenta
11.05.23

Os hermanos irão às urnas em outubro deste ano para discutir o seu futuro. A depender do resultado, é possível que a Argentina se torne de vez um foco de instabilidade na América do Sul.

Conta-se que, em 1840, o então ditador argentino Juan Manuel Rosas enviou aos rebeldes farroupilhas uma proposta de ajuda para combater os imperiais.

Como resposta, o general David Canabarro, então presidente da República Rio-Grandense, enviou uma carta em que dizia: “Senhor: o primeiro de vossos soldados que transpuser a fronteira fornecerá o sangue com que assinaremos a paz com os imperiais.”

Canabarro, que certamente não estava sob influência da Globo (a quem muitos acusam de forçar uma rivalidade para gerar audiência no futebol), já expressava uma situação que, ainda que não tenha se tornado bélica, também não evoluiu em grande integração.

Rivalidades entre países vizinhos não chegam a ser novidade no mundo. De fato, essa é a regra, como não nos deixam mentir os europeus.

Tal regra, que opõe franceses e alemães, japoneses e chineses, japoneses e sul-coreanos, ingleses e franceses e por aí vai, encontrou apenas um empecilho: o comércio.

Há alguns séculos descobrimos que, ao deixar rivalidades de lado, podemos obter benefícios significativos ao realizar comércio com outras nações. Na prática, como dizia Adam Smith “não é da benevolência do açougueiro que você espera obter seu jantar, mas do autointeresse dele“.

O comércio foi, e continua sendo, a tecnologia mais revolucionária da história da humanidade, capaz de nos levar a uma era de prosperidade e paz, ainda que não absoluta.

Em 1997, o americano Thomas Friedman chegou a cunhar uma teoria anedótica sobre o tema, apontando que “nunca dois países que possuem um McDonald’s entraram em guerra“. Era a “Teoria dos arcos dourados“, fragorosamente derrubada com a invasão da Ucrânia pela Rússia.

Ainda assim, como regra geral, o comércio é uma ferramenta importante para a manutenção da estabilidade regional e global.

E quando olhamos para a Argentina neste momento, nenhum outro sinal de alerta soa tão alto quanto a capacidade, ou incapacidade, do país de se integrar ao resto do mundo.

Alberto Fernandez, o presidente argentino, veio ao Brasil na última semana em meio a um cenário interno “conturbado“, para ser generoso.

Estimativas externas dão conta de que as reservas cambiais em dólares da Argentina estariam em 5 bilhões de dólares negativos, considerando operações de compra e venda em moeda americana feitas pelo Banco Central da República Argentina.

A pobreza, que atinge 4 em cada 10 pessoas no país, segue em tendência crescente, em boa medida graças à inflação, que já chega a 104% nos últimos 12 meses.

Sem dólares, a Argentina recorre a quem pode para propor negociações em “moeda local“.

Foi essa proposta que esteve na mesa para o Brasil. A despeito do alinhamento ideológico, o governo brasileiro tem pouco espaço para agir.

Graças a boas legislações passadas, nosso Banco Central é proibido de assumir o risco cambial do país vizinho, o que torna inviável que paguem na moeda do governo argentino, o peso. Por aqui podemos receber apenas naquela moeda que os argentinos guardam debaixo do colchão, o dólar.

É possível, porém, que o Brasil acabe financiando um ou outro projeto no país, como um gasoduto para escoar a produção do campo de Vaca Muerta, uma das maiores reservas de gás natural do planeta. Mas não virá daí a solução para os problemas do país vizinho.

Em termos mais claros, a Argentina precisa ter condições de importar produtos para evitar uma espiral inflacionária. Sem dólares, as cotações de produtos internos do cotidiano (mesmo alimentos), tornam-se cada vez maiores, com a corrosão da renda das famílias levando a um aumento da pobreza.

E neste cenário, só há duas alternativas. Justamente o que deveria fazer você, leitor, prestar atenção nas eleições que o país verá em outubro deste ano.

No cenário 1, a Argentina aperta os cintos e controla a causa primária da sua inflação: a impressão de dinheiro.

Ao contrário do Brasil, a Argentina não possui leis que proíbam o Banco Central de comprar títulos do Tesouro, o que na prática significa dizer que para financiar gastos, o governo pode simplesmente imprimir dinheiro.

E os governos por lá têm feito isso de forma acelerada. Estima-se que cerca de 75% da conta de luz de um argentino seja paga pelo governo. Esses subsídios equivalem a 4% do PIB e são considerados “impossíveis de baixar“.

Obrigar os argentinos a pagar o valor da sua conta de energia, gás, transporte e outros serviços implicaria um duro arrocho econômico, com efeitos de curto prazo no orçamento das famílias, mas benefício de médio e longo prazo no país.

Há, claro, outros tantos fatores a serem corrigidos para tornar o país mais racional. A Argentina tem uma estrutura tributária ainda mais surrealista que a brasileira, com impostos que chegam a 70% do valor agregado produzido em setores como agricultura (lembre-se que o valor agregado é o que sobra a distribuir entre salários, lucro e impostos, após cobrir os custos).

O país também possui uma pesada e burocrática máquina pública, uma herança genética ibérica.

Mas há ainda um cenário 2, com um país que poderia ajudar a aliviar a situação por lá: a China.

Em janeiro deste ano os chineses e argentinos realizaram um acordo envolvendo troca de pesos por yuan da ordem de 130 bilhões de yuans (US$ 30 bilhões). Neste momento, esses yuans compõem a vasta maioria das reservas argentinas.

Para os chineses, essa pode ser uma porta de entrada interessante em uma expansão global na Rota da Seda.

O país também possui interesse de construir uma base de “pesquisa“, no sul da Argentina, próximo à Antártida, além de outros investimentos.

Como vemos ao norte, com a Venezuela, esse tipo de ajuda tende apenas a retardar correções de rumo. Com linhas de crédito, é possível que o governo argentino siga ignorando uma correção de rota e continue a agir como se o problema fosse uma seca eventual, ou a dureza do FMI.

Nesse cenário, seria criado mais um ponto de instabilidade na América do Sul, afastando possibilidades de que possamos, juntos, buscar um maior nível de desenvolvimento.

Longe de reviver rivalidades do passado, é importante torcer para que os argentinos encontrem um caminho de fato independente.

Por isso, convém ficarmos de olho nas decisões que serão tomadas por lá em outubro deste ano.

 

Felippe Hermes é jornalista

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  1. Chamam atenção, no artigo, tanto a coerência da argumentação, quanto a singularidade da abordagem dos problemas estruturais vividos pela Argentina. Os dois eventuais cenários sobre os quais, especula o autor, poderão estar envolvidas decisões econômicas de sérias implicações estratégicas para aquele país e seu entorno regional não fazem parte das matérias usualmente divulgadas pela imprensa. As oportunas observações do autor deixam a sensação de que subsistem exemplos de bom jornalismo no país.

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