Antônio Milena / Agência BrasilLíderes posam para foto em Evian, em 2003: convite veio de Jacques Chirac

Lula no G7: falta discutir a relação?

O presidente brasileiro despreza o convite aberto para aceder à OCDE, mas faz questão de sentar-se à mesa dos grandes
11.05.23

O sentido, a existência e as funções do G7 têm muitas explicações, além das inevitáveis teorias conspiratórias sobre o complô secreto dos poderosos para continuar mandando no mundo, desde os Illuminati e maçons, até a Comissão Trilateral e o grupo Bilderbeg (esse, o preferido do falecido polemista Olavo de Carvalho para simbolizar o poder globalista que atuava nas sombras, juntando ricaços como George Soros, esquerdistas gramscianos reciclados nos temas das minorias e “burocratas não eleitos da ONU”). A explicação mais plausível é, evidentemente, a que deriva do fracasso da superpotência econômica do pós-Segunda Guerra em administrar as obrigações derivadas de seus compromissos contraídos em Bretton Woods (1944), que montou a ordem econômica mundial tal como existe ainda hoje (com as mudanças inevitáveis que se seguiram).

Com efeito, o G7 – primeiro sob a forma de G5 – surgiu depois que Richard Nixon, o conservador subitamente tornado keynesiano quando conferiu, com seu secretário do Tesouro, que Fort Knox não teria ouro suficiente, não apenas para satisfazer o satânico Dr. No, de Ian Fleming, no primeiro filme da série James Bond, mas sobretudo para atender aos reclamos de muitos países da esfera americana, que estavam inundados de dólares provenientes da generosidade americana durante a Guerra Fria, frente às balanças deficitárias contra o formulador e dono do padrão ouro-dólar estabelecido na famosa conferência do New Hampshire, que criou o FMI e o Banco Mundial. Entre 1945 e 1971, os Estados Unidos supostamente cumpriram razoavelmente o seu papel de prover um meio circulante mais ou menos estável para irrigar os intercâmbios internacionais e permitir um mínimo de estabilidade nas paridades das principais moedas conversíveis.

Claro que essas obrigações eram teóricas, pois os países capitalistas que seguiam o patrão de charuto e cartola não contavam com a astúcia do banqueiro mundial, o dono da única moeda confiável na difícil conjuntura do pós-guerra, quando se podia, com uma cédula de dólar, comprar virtualmente qualquer coisa entre o deserto da Mongólia e as savanas africanas, sem que fosse preciso dar qualquer explicação sobre a validade daquele pedaço de papel verde. Essa astúcia consistiu em viver à larga durante os anos de enfrentamento com a satânica URSS, financiando seus déficits bilaterais com os aliados com fartas emissões de verdinhas, também usadas para instalar bases militares em todos os cantos do mundo e tropas de ocupação nos grandes derrotados: Alemanha e Japão (a Itália não precisava, ela já estava sendo naturalmente americanizada durante os anos de glamour da Cinecittà). Foi assim que os “ocupados” e “tutelados” desde Washington se viram virtualmente submergidos com milhões de dólares, sem que precisassem de tudo aquilo para pagar suas importações dos Estados Unidos, inclusive porque esses foram tolerantes com as discriminações comerciais que sofriam de europeus e japoneses.

O general De Gaulle, o único francês que falava de si mesmo na terceira pessoa – depois do Roi Soleil, e antes de Pelé e Lula –, ainda conseguiu resgatar o seu equivalente em ouro da montanha de dólares que a França (sempre fascinada com o padrão ouro desde o “franco Poincaré” de 1928) acumulava desde os anos 1950. Mas não foi o caso da Alemanha e do Japão, por acaso pagando uma parte das tropas de ocupação americana em seus respectivos territórios. Como lhes disse o secretário do Tesouro americano, fiquem tranquilos, o dólar é tão bom quanto o ouro (as good as gold). Foi depois desses embates que Nixon resolveu, em agosto de 1971, desvincular os EUA da obrigação de trocar cada 35 dólares submetidos ao Treasury por uma onça de ouro, como tinha sido estabelecido no convênio constitutivo do FMI (que já tinha começado a causar preocupações desde o final dos anos 1950). De repente, o Secretário do Tesouro teve de confessar aos países amigos que “o dólar é a nossa moeda, mas o problema é de vocês”.

Foi na sequência da crise então criada e das contínuas desvalorizações do dólar, que o presidente francês Giscard d’Estaing, acusando o “privilégio exorbitante” do dólar no sistema monetário internacional – que de fato não mais existia –, convidou cinco grandes potências capitalistas a se reunirem para discutir a relação, amigavelmente, sem desquite ou divórcio em vista. Pouco depois também se decidiu criar uma moeda contábil do FMI, baseada no dólar, na libra britânica, no marco alemão, no franco francês e no iene japonês (decisão por acaso tomada na única reunião do FMI-Banco Mundial realizada no Brasil, no Rio de Janeiro em 1967). Poucos anos depois, o Canadá e a Itália (que acabava de suplantar a decadente Grã-Bretanha dos anos pré-Thatcher) também foram admitidos ao clube, que se tornou G7. Ele se tornou o virtual administrador da cooperação econômica internacional, quando a URSS e a China Popular ainda não tinham sido admitidas nas “irmãs de Bretton Woods”.

Foi o G7 quem administrou, por exemplo, várias crises econômicas mundo afora, dos próprios países membros (libra britânica e lira italiana nos anos 1970), da dívida externa dos países em desenvolvimento nos anos 1980 e 90, e dos próprios países desenvolvidos na crise financeira global de 2008-2009. Foi generoso o bastante para a acolher a combalida Rússia nos anos 1990, ou o que sobrou do falido império soviético e suas dependências depois da implosão do socialismo realmente existente, e até concedeu à Rússia – no G7 de Kananaskis (Canadá), em 2002 – o status de democracia de mercado, quando o seu capitalismo mafioso estava a anos-luz de distância dessa qualificação (a China, que sempre foi mais capitalista que a Rússia, nunca ganhou esse mimo). O G8 – G7 mais Rússia – existiu virtualmente (pois que a parte importante, a financeira, continuava a ser G7) mais tempo do que deveria existir, e só veio a termo depois da invasão da Crimeia por Putin, em 2014.

Lula foi convidado, como um dos líderes externos, por Jacques Chirac, presidente francês, ao G7 de Evian, em 2003, e era um habitual frequentador da “sobremesa” das reuniões, como ele desdenhosamente se referia a essa concessão aos “primos pobres”. Bolsonaro foi completamente ignorado pelo clube dos ricos, e Lula volta novamente a ser um convidado para o próximo G7, em Hiroshima. Suas primeiras “recomendações” sobre a paz na Ucrânia foram discreta ou abertamente criticadas pelos sete apoiadores do país invadido por Putin, e ele deve ter retornado de seus primeiros périplos internacionais um pouco mais calejado pelo realismo frio do jogo entre os grandes da geopolítica. O que parece contraditório na postura de Lula é que ele (provavelmente “guiado” pelo seu conselheiro internacional) despreza o convite aberto para aceder à OCDE, mas faz questão de sentar-se à mesa dos grandes, para talvez aconselhá-los a como ser bonzinhos com os países em desenvolvimento. O exercício da OCDE seria um bom ambiente para começar a “discutir a relação”, sem precisar acomodar-se em algum divã de psicanalista político.

O mais intrigante para os membros do clube é essa mania de tentar associar-se à criação de uma “nova ordem mundial”, quando a de Bretton Woods está “ativa e altiva”. Talvez seja mesmo um caso para um “conselheiro espiritual”.

 

Paulo Roberto de Almeida é diplomata e professor

www.pralmeida.org

diplomatizzando.blogspot.com

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