Pablo Valadares / Câmara dos Deputados

A mãe dos burros

A política, tal como praticada por gente sempre pronta a calar e cancelar o que escapa dos seus preconceitos, é a mãe dos burros no Brasil de hoje
04.05.23

Comecei a ler no último feriado um livro chamado Ignorance: A Global History (Ignorância: Uma História Global), do historiador britânico Peter Burke. Sem demora – é claro – o Brasil me deu uma lição extra sobre o tema: por causa de uma campanha histérica feita na internet pelo deputado federal Gustavo Gayer (PL-GO), a Universidade de Rio Verde, em Goiás, retirou da sua lista de leituras para o vestibular o romance Eu Receberia as Piores Notícias de Seus Lindos Lábios, do escritor Marçal Aquino.

Gayer, que provavelmente não leu o livro inteiro, denunciou-o por conter, na sua opinião, “absurdos pornográficos”. Preocupou-se com o fato de que não são apenas marmanjos que testam seus conhecimentos no vestibular: vez por outra, adolescentes de 14 anos também participam da prova. Gayer parece acreditar que o contato com uma obra literária que tem o sexo entre seus assuntos vai  prejudicar para sempre o desenvolvimento de “nossas crianças”. Essa garotada, como é sabido, jamais tem a oportunidade de ouvir um palavrão no seu dia a dia. Curiosamente, o vídeo do deputado concentra em alguns segundos o vocabulário pesado que, no romance, está distribuído por 250 páginas.

Ao comentar o episódio, Marçal Aquino ponderou que, até pior do que a fala de Gayer, é o fato de a Universidade de Rio Verde ter retirado o livro de sua lista de leituras sem apresentar um argumento contrário, uma defesa sequer da escolha pedagógica de tratar da obra no vestibular. O escritor está certo. A Universidade agiu de maneira covarde. Foi indigna de sua missão de promover a educação, escolhendo em vez disso o preconceito.

Lançado em 2005, Eu Receberia as Piores Notícias de Seus Lindos Lábios é um dos bons livros da ficção brasileira contemporânea. Tem cenas de sexo, mas não é um romance sobre sexo. Trata-se de uma história de pegada realista sobre a vida num desses lugarejos sem lei que são tão abundantes no Brasil: uma região do Pará que está prestes a experimentar uma corrida do ouro e onde se encontram garimpeiros, bandidos, prostitutas, pregadores – e o narrador, um fotógrafo que foi até lá para retratar o ambiente e acabou ficando apaixonado por uma mulher.

O romance de Aquino se encaixa numa tradição que vem de longe na ficção brasileira e engloba autores como Aluísio Azevedo, no século 19, ou Jorge Amado, no começo do século 20. Se as escolas brasileiras do ensino médio tiverem de seguir a sensibilidade de Gayer, os livros desses autores clássicos, igualmente cheios de violência e sexo, também não podem mais ser ensinados nas salas de aula ou exigidos em provas.

A “história global da ignorância” escrita por Peter Burke, à qual me referi no primeiro parágrafo, pretende mostrar que a burrice é um fenômeno mais complexo do que se costuma imaginar: tem aspectos sociológicos, filosóficos, psicológicos. Pode ser inocente, imposta ou voluntária. Manifesta-se de maneira diferente em diferentes áreas, como a guerra, a política ou a economia.

Achei um pouco decepcionante que Burke não tenha capítulos específicos sobre os efeitos da ignorância na cultura e nas artes, as duas áreas que Gayer atinge com o seu tacape e onde o espírito censório costuma fazer a festa. Burke dedica alguns parágrafos à história censura, em suas modalidades religiosa e secular, mas não tece maiores considerações sobre como essa atividade produz ignorância de forma abundante. Ele tampouco fala daquilo que estou chamando de “espírito censório” o esforço para impedir o acesso a certos tipos de conhecimento ou criação intelectual, mesmo quando não se dispõe dos poderes policialescos de uma repartição do Estado. Paulo Gayer não é um censor, em sentido estrito. Mas transborda de espírito censório. 

Quando a censura ou o espírito censório são bem-sucedidos, eles restringem a liberdade e o universo mental de suas vítimas. Multiplicam o volume de ignorância no mundo. Mas a lâmina corta igualmente para o outro lado. A ignorância também grassa entre aqueles que pretendem censurar. Como escreveu certa vez o prêmio Nobel J. M. Coetzee, que viu seus livros passarem pelo escrutínio do governo em seu país natal, a África do Sul, na década de 1980, “a censura não é uma ocupação que atraia mentes inteligentes e sutis”.

Uma das maneiras de se referir a um dicionário no Brasil é como “pai dos burros”. Um pai generoso, que resolve o problema de quem o procura. Atualmente, o Brasil também conta com uma mãe dos burros: a política, tal como praticada por gente sempre pronta a calar e cancelar o que escapa dos seus dogmas. Essa é uma mãe perversa, que fomenta a ignorância em sua prole – tão numerosa, à esquerda e à direita, no Congresso Nacional. 

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  1. Não culpo a universidade. O poder da carteira é muito grande no Brasil e é difícil resistir aos desqualificados que o empunham.

  2. Muito bom Graieb! Quando o mesmo político descobrir que tem um filme brasileiro com o mesmo nome vai querer mudar a classificação indicativa do filme.

  3. Sei não. A coisa é muito mais profunda. A sociedade está emburrecendo. Não há dúvida. O que me preocupa é ver "celebridades" ocuparem os espaços públicos, legislando, regulamentando, influindo. Esse Gayer é um "influencer". Quantos Tiriricas sem alcunha de palhaço temos lá? As decisões dos nossos últimos executivos nos trazem vergonha alheia. Lulas, Dilmas e Bolsonaros. Deus! Até qundo?!

  4. O livro é excelente e, com certeza, não aborda nada que as “nossas crianças” de 14 (!!) anos já não saibam É hipocrisia mais do que ignorância!

  5. Preocupa não, Carlos Graieb, esse problema é questão de tempo para ser resolvido. É só colocar mais esse livro na cesta de obras a serem reescritas por conterem teor ofensivo, como A fantástica fábrica de chocolate (Roald Dahl), os da Agatha Christie, James Bond... Com um pouquinho de paciência, vai chegar a vez deste. Então podemos incluir também as obras do Monteiro Lobato, Jorge Amado, Aluísio Azevedo.... Tudo limpo, asséptico e compatível aos nossos valores atuais. Quem viver, verá!

    1. Renata, o que se pode falar, além de "lamentável". Nossa cultura sendo reescrita. Os professores de História terão muito trabalho para inventar um passado sem referências.

    2. Monteiro Lobato já está anunciado que vai mesmo ser reescrito.

  6. Já dizia o meu saudoso professor de história a muitos anos atrás que políticos, e grandes grupos econômicos querem sempre dar uma educação / e infraestrutura a pior possível, para manter o controle do povo. Exemplo remuneração ridícula para professor. E torrando verbas dos ministérios

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