O general Gonçalves Dias no Palácio do Planalto, no 8 de janeiro

O bolsonarismo pode “disputar narrativas” na CPMI, mas não escapará dos fatos

As trapalhadas do GSI e a relutância petista em aderir ao inquérito parlamentar deram uns pontinhos para a oposição, mas a conta da devastação em Brasília é de Jair Bolsonaro
27.04.23

É o general menos general que já vi. De jeans, casaco e tênis – roupas civis de quem foi chamado ao trabalho no domingo –, ele sobe até o terceiro andar do palácio, tomado pelos invasores. Não desce do elevador: aperta o botão para voltar ao térreo. Mais tarde, retorna ao terceiro andar. Anda pela área depredada, falando ao celular. Então orienta alguns remanescentes do quebra-quebra a se encaminharem à saída – gesto que selaria sua demissão do cargo de ministro do Gabinete de Segurança Institucional. O general Edson Gonçalves Dias diz que estava encaminhando os criminosos ao segundo andar, onde eles seriam detidos.

Desprovidas de som, como é o padrão nas gravações feitas por câmeras de segurança, as imagens permitem questionar se o então ministro não terá sido leniente com os vândalos do Palácio do Planalto. A impressão que me ficou, porém, não foi de leniência, mas de desânimo. O general ministro estava aparvalhado, sem ação. Andando a esmo entre os escombros deixados pela Horda Canarinha, ele era a própria imagem da impotência. Não se espera que um general ou um governo projetem essa imagem.

Nos dias que se seguiram à divulgação dos vídeos pela CNN, os governistas se viram obrigados a reafirmar que a devastação de Brasília foi obra de bolsonaristas. Na imprensa, os colunistas simpáticos ao PT (não são poucos) cansaram o dedo batendo nessa tecla. Não estão errados, claro. O saque à capital foi obra de bolsonaristas, respondendo aos chamados que seu mítico líder fez durante quatro anos (talvez sob efeito de medicação, como ele alegou em depoimento à Polícia Federal). Ainda assim, que tenha sido necessário reafirmar esse fato já foi uma pequena vitória bolsonarista. Agora, os petistas correm para reparar o erro de Lula, que não queria uma CPMI do 8 de setembro.

Desde que a CPMI se tornou inevitável, todos se dizem entusiasmados por ela. Na fantasia dos bolsonaristas, ficará provado que os responsáveis pela depredação das sedes dos Três Poderes foram infiltrados petistas, em um grande complô para consolidar o poder da esquerda. Seria o nosso incêndio do Reichstag, a história alemã se repetindo no Brasil como farsa (ou como chanchada). Os petistas largam com certa vantagem, pois podem nomear um suposto infiltrado no Planalto: o major José Eduardo Natale de Paula Pereira, filmado entregando garrafas de água para os invasores (para acalmá-los, segundo declarou à Polícia Federal).

Não confio na CPMI para produzir qualquer esclarecimento sobre a barbárie da Horda Canarinho. Inquéritos parlamentares sempre foram espectaculosos, midiáticos, e este, em especial, promete um circo de aberrações. Prevejo que deputados e senadores estarão empenhados não na busca da verdade, mas no que se convencionou chamar de “disputa de narrativas”.

Disputas de narrativa” produzem rico material para memes, mas são pobres em ideias. A expressão, aliás, é em si mesmo pobre. Detesto o emprego atual que se dá à palavra “narrativa”. Tornou-se um clichê da crônica política (não só política: encontramos a tal “disputa de narrativas” até em textos sobre os barracos domésticos de Johnny Depp ou Luana Piovani). Minha aversão tem algo a ver com uma vida profissional em boa parte dedicada à crítica literária, na qual narrativa e narrador são conceitos centrais. Fico irritado ao ver que, aos poucos, “narrativa” vai se convertendo em sinônimo de mentira, fraude, contrafação, impostura.

Paradoxalmente, o fato de que narrativa não é sinônimo de mentira, fraude etc. constitui um problema ainda maior. Pois a palavra neutra acaba higienizando a natureza suja da propaganda política. Quando se diz que há uma “disputa de narrativas” em torno do impeachment de Dilma Rousseff, deixa-se de apontar a escandalosa falsificação da realidade que é equiparar um processo previsto na Constituição com um golpe de Estado. Quando se diz que os bolsonaristas desejam “controlar a narrativa” sobre o 8 de janeiro, mascara-se um esforço orquestrado de distorção histórica, destinado a transformar um ataque violento à democracia em manifestação legítima do pensamento divergente.

A CPMI foi destravada não por uma narrativa, mas por uma imagem em vídeo (alguém dirá que essa imagem suscitou uma série de narrativas divergentes – mas a palavra mais precisa aqui é “versões”). Há mais imagens de onde aquela foi retirada: a Polícia Federal informou que os circuitos de segurança de Planalto, Congresso e STF produziram 4.410 horas de gravações no 8 de janeiro. Uma das gravações do Planalto que vieram à tona com o affair Gonçalves Dias mostrava os patriotas fazendo selfies e lives dentro do Planalto: se investigaram os celulares dessa gente toda, os policiais terão um repertório inabarcável de imagens.

No fim das contas, o que está em disputa não são narrativas ou versões, mas a imagem pública de uma só pessoa: Jair Bolsonaro. Na terça-feira 25, o Estadão publicou um excelente editorial sobre a CPMI, argumentando que ela só cumprirá sua função se apurar a responsabilidade do ex-presidente e sua pregação golpista pela nojeira que se viu em Brasília. Os parlamentares bolsonaristas querem mudar o rumo da história. Baterão bumbo em torno de qualquer caso de negligência ou incompetência do atual governo na resposta à Horda Canarinha. E de fato ainda precisamos de esclarecimentos sobre as ações do general com nome de poeta, do major da água mineral e dos demais membros do GSI. Mas a conta do estrago vai toda para o bolsonarismo. Não há como mudar essa narrativa.

 

Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor

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