Zuffe/LeLaisserPasserA38Nas catedrais góticas, como a de Notre Dame, elementos convergem para a flecha

A reconstrução do passado

O Museu Nacional, incendiado em 2018, poderia muito bem ser reconstruído à l’identique, como a flecha da Catedral de Notre Dame
28.04.23

A Basílica de Saint-Denis, em Paris – onde nasceu o estilo gótico –, vai ter sua flecha reconstruída até 2030. A flecha, que ficava na torre direita, foi desmontada pedra por pedra após um vendaval que a fragilizou em 1845. Até hoje, a Basílica onde eram enterrados os reis da França tem apenas a torre direita. Para a reconstrução, foi preciso escavar, e descobriram-se alguns tesouros arqueológicos, como tumbas do período merovíngio (século 5 até 8) e carolíngio (século 8).

Não é raro que catedrais estejam construídas em locais onde já havia igrejas anteriores ou templos pagãos. Antes da Catedral de Chartes, no mesmo local, existia uma igreja antiquíssima. Sob a Catedral de Colônia, descobriram-se mosaicos romanos representando o deus Dyonisius – o que levou a psiquiatra junguiana Nise da Silveira a pensar a catedral, do alto de suas torres até os mosaicos subterrâneos, como um corte da psique humana.

A Catedral de Notre Dame de Paris pegou fogo em 2019. A flecha, o teto e o órgão centenário vieram abaixo. Notre Dame era o monumento mais visitado da França, com 14 milhões de visitantes por ano. Um intenso debate sobre como deveria ser a reconstrução aconteceu após o incêndio. Projetos de modernização de todo tipo vieram à tona, feitos por escritórios de arquitetura. Finalmente, o governo decidiu reconstruir a catedral à l’identique, exatamente como era antes do incêndio.

Existem visões distintas sobre como manter e restaurar o patrimônio histórico. A mais romântica é de John Ruskin, escritor que foi uma referência fundamental para Marcel Proust. Ruskin dizia que as construções arquitetônicas, inclusive as catedrais, deveriam ser deixadas para morrer dignamente, em vez de serem restauradas e reconstruídas, como uma farsa. Felizmente, a visão de Ruskin não foi muito difundida, e é por isso que muitos monumentos chegaram até nós. Não se pode, entretanto, desdenhar do autor: ele tinha uma visão da história da arte totalmente original, e foi um dos maiores escritores de língua inglesa.

Visão diametralmente oposta é a de Eugene Viollet-le-Duc, que fazia uma restauração hoje chamada de estilística. Ele realizava uma reconstituição idealizada, cujo resultado final poderia ser bem diferente do original. Dizia ele: “Restaurar um edifício não é mantê-lo, repará-lo ou refazê-lo, é restabelecê-lo em um estado que pode não ter existido nunca em um dado momento”. Foi ele que construiu a flecha da Catedral de Notre Dame de Paris, aquela destruída pelo incêndio em 2019. Observe que nas fotografias anteriores a 1844 – quando foi feita a restauração de Viollet-le-Duc – a flecha, elemento tão importante da volumétria da catedral, não existe.

Qual a importância da flecha numa catedral gótica? Tudo numa catedral aponta para o alto – a flecha, porém, é o elemento central para onde tudo converge. A essência do gótico reside na sacralidade da sua orientação, tanto espacial quanto volumétrica. Nisso está a grande diferença para a arquitetura renascentista que, com suas cúpulas grandiosas, encerram em si uma realidade, enquanto o gótico aponta para o céu, o divino.

Viollet-le-Duc deu um acréscimo fundamental a uma obra cuja construção passou por inúmeras gerações, com seus 850 anos. E o que está sendo reconstruído, hoje na Catedral de Notre Dame de Paris pós-incêndio, é exatamente esse acréscimo – a flecha. Podemos tirar uma lição para o caso brasileiro. O Museu Nacional, incendiado em 2 de setembro de 2018, poderia muito bem ser reconstruído à l’identique. E mais: o Palácio Monroe, destruído em 1976, sob o governo de Ernesto Geisel, poderia ser reconstruído exatamente no local onde existiu por setenta anos.

O Palácio, uma obra-prima do ecletismo arquitetônico, onde em 1910 aconteceu o funeral de Joaquim Nabuco, foi projetado para o Pavilhão do Brasil na Exposição Universal de 1904 em Saint Louis, nos Estados Unidos. O pavilhão, projetado pelo arquiteto e engenheiro militar Coronel Francisco Marcelino de Sousa Aguiar, conquistou o principal prêmio da exposição, e foi desmontado e trazido ao Brasil, onde por muito tempo foi a sede do Senado Federal.

Destruído, até hoje o terreno, no bairro da Cinelândia, permanece vazio. Naturalmente, uma reconstrução desse tipo custaria muito dinheiro aos cofres públicos, mas o ganho patrimonial seria incalculável. Na Inglaterra e nos Estados Unidos existe um movimento de restauração de casas, igrejas, prédios públicos aos seus moldes clássicos originários – e por vezes o edifício inteiro é reconstruído, ou totalmente remodelado a partir de um atual moderno. Bem que essa moda poderia chegar ao Brasil. Nunca é tarde.

 

Josias Teófilo é cineasta, jornalista, escritor e fotógrafo

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  1. Quantos votos a restauração me dará e quanto de comissão eu vou levar... Acho que é só isso que importa... ainda mais no Rio de Janeiro...

  2. É curioso ver como essas questões eram abordadas antigamente. No Coliseu, não muito claras as adições provenientes dos reparos feitos na Idade Média. A Catedral de Santiago de Compostela ostenta caracteríscas de escolas distintas da arquitetura, provenientes das reformas que foram feitas ao longo dos séculos. E lá estão, guardando harmonia na medida do possível.

  3. Sou contrário a mudanças estruturais ou de design de monumentos históricos durante reparações. Também sou absolutamente contrário a ideia de se deixar ruir pelo tempo por excesso de pudor. Quanto o museu nacional, que seja recuperado como era, ainda que seja apenas a casca recuperável, já que o que de maior valor, seu acervo incendiado, nunca será recuperado.

  4. muito bom Josias. É fato que os custos podem gerar grandes debates no nosso congresso, mas precisamos cuidar da nossa história e esse assunto vem à baila quando acontece uma tragédia. Poucos meses e tudo é esquecido.

  5. Prezado Josias. Talvez fosse interessante ler um artigo espetacular escrito por Laurentino Gomes sobre o incêndio no Museu Nacional. Aqui você trata como "incendiado" , compreendo a semântica no caso. Mas, a narrativa real é da negligência dos que dirigiam e trabalhavam no Museu. O relato de Laurentino mostra aquela regra brasileira da "tragédia anunciada" : todos sabiam que a tragédia era iminente. Em nome da "cultura" nunca, ninguém, nenhum órgão de imprensa quis , como Laurentino, a verdade.

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