José BritoPesquisa da Abomitec apontou que 78% desses trabalhadores pretendem continuar no ramo

Um partido em busca de trabalhadores

Sem contar com as massas proletárias do passado, PT pena ao tentar se conectar com os entregadores de aplicativo
27.04.23

A fila da esquerda andou. Nos anos 1980, quando Lula discursava nos pátios das fábricas de automóveis do ABC paulista, a narrativa da luta de classes ainda tinha ampla aceitação. Os operários da indústria, que então representava 25% do PIB, entendiam que, para eles terem uma vida melhor, o patrão capitalista precisaria ceder mais. O socialismo vigorava na União Soviética, os Estados Unidos eram um império em ascensão, não existia o termo globalização e ninguém sonhava em internet.

Esse mundo hoje só resiste dentro da cabeça de Lula, de petistas e membros de partidos à esquerda. O ABC paulista foi tomado por shopping centers, prédios residenciais e academias de ginástica. A indústria, que hoje representa 11% do PIB, cedeu lugar ao setor de serviços e ao agronegócio. Nas fábricas, robôs substituíram os trabalhadores industriais — como o torneiro-mecânico, a profissão de Lula. As consequências para o PT foram bem sentidas. Sem poder contar com as multidões de trabalhadores que lotavam os pátios, a sigla tem tentado se fortalecer apelando às mulheres, aos negros e à comunidade LGBT. O êxito é relativo. Com 69 deputados na Câmara, de um total de 513, a sigla precisa ceder muitos cargos e verbas para avançar com propostas no Congresso.

Essa revolução silenciosa que ocorreu na estrutura da sociedade e seu impacto político motivaram setores petistas a buscar uma categoria para representar, para reforçar sua base eleitoral. Hoje, ironicamente, o PT é um partido em busca de trabalhadores. O foco da legenda recaiu sobre 2 milhões de motoristas e entregadores de aplicativos, que até agora não parecem interessados em responder ao convite.

Em uma entrevista à TV Brasil em fevereiro, o ministro do Trabalho, Luiz Marinho declarou solidariedade ao grupo. “Minha preocupação é com os trabalhadores e trabalhadoras. É eles que nós queremos proteger, porque as empresas, meu caro, estão é explorando demais essa mão de obra. E explorando sem nenhuma proteção. Com baixo salário, jornada extenuante e sem nenhuma proteção social”. Falou-se então em “regularização” e “formalização” da profissão, sem entrar muitos nos detalhes.

No mês seguinte, Marinho, um ex-operador de máquinas na Volkswagen e ex-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, destilou sua raiva dos patrões, no caso, as empresas digitais: “Uma pergunta muito agressiva: e se a Uber e as plataformas não gostarem do processo de formalização? Eu sinto muito. Se for embora, problema da Uber”.

A solução para uma possível fuga de empresas, segundo ele, seria o socorro estatal. Marinho falou em “chamar os Correios” para se encarregar do transporte individual de passageiros no país. Ele também propôs criar um grupo de trabalho com representantes do governo, das empresas e das centrais sindicais, para formular uma proposta de regulamentação, que será enviada ao Congresso no segundo semestre. Quem está ausente nessas reuniões, lamentavelmente, são os trabalhadores, justamente o objetivo desses encontros.

É um fato indiscutível que trabalhadores por aplicativo enfrentam rotinas extenuantes e que exigem muita disposição física. Não há brasileiro que desconheça essa realidade. Nas redes sociais, circulam vídeos em que eles aparecem como vítimas de humilhações, incluindo violência física e atos de racismo. Mesmo assim, eles não parecem dispostos a hipotecar a liberdade dada pelo aplicativo em troca da tutela de um governo ou partido. “A maior parte desses trabalhadores teme que uma intervenção estatal inviabilize o serviço que eles prestam, o que acabaria com uma fonte de renda extra”, diz Murilo Hidalgo, diretor do Instituto Paraná Pesquisas.

A preocupação é que um controle governamental excessivo acabe reduzindo as oportunidades e as liberdades. O problema é o oposto do que havia no governo anterior. O ex-presidente Jair Bolsonaro caiu nas graças dos motociclistas ao dobrar para 40 o limite de pontos em multas na carteira de motorista para condutores que dependem do veículo para trabalhar. Bolsonaro justificou assim a decisão, em live de outubro de 2020. ”Ele cuida da vida dele, pô. Ele que está em cima daquele trem ali. Eu sempre cuidei da minha vida, por muito tempo fui motociclista”, disse Bolsonaro. Até mesmo um sociólogo como José Pastore, histórico defensor da liberalização das leis trabalhistas, acredita que é preciso fornecer alguma rede de proteção a quem não usa seu veículo apenas para motociatas de fim de semana. “A sociedade não aguenta mais a situação de total desproteção dessas pessoas. É intolerável ver um garoto em cima de uma moto se estatelar num poste e ninguém ser responsável por nada”, diz.

A abordagem do PT é paternalista. Segundo dados do iFood, 66% dos entregadores permanecem conectados menos de 40 horas por mês, o que mostra que muitos usam a plataforma como bico temporário ou complemento de renda. Motoboy e advogado, Anderson Carvalho exalta a flexibilidade oferecida pelos aplicativos. “Consegui estudar. Consegui me formar. Consegui dedicar um pouco do meu tempo para o meu futuro”, diz. Mesmo diplomado em direito e trabalhando em um escritório de advocacia, ele segue fazendo entregas. Uma pesquisa encomendada pela Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia, Amobitec, que ouviu 3.025 trabalhadores de aplicativo, indica que 66% dos entregadores brasileiros não estão buscando outro emprego. Além disso, 78% deles dizem que pretendem continuar trabalhando no ramo. Outro dado relevante: 43% dos motoristas e 31% dos entregadores consultados estavam desempregados antes de buscar essas plataformas.

Essa nova realidade, resultante de uma mudança nas relações de trabalho, e a debilidade das alternativas apresentadas não anulam o fato de que essas pessoas estão em situação precária e precisam de ajuda. A questão é estudar quais seriam as melhores maneiras de fazer isso, sem que a interferência estatal excessiva inviabilize o negócio e prejudique a todos. José Pastore sugere que isso seja feito por meio de leis previdenciárias. “As proteções da CLT não se ajustam à variedade de atividades que esse pessoal pratica. Mas eles poderiam se inscrever no INSS e ter dez ou quinze proteções oferecidas pela Previdência Social”, propõe. Hoje, apenas 23% desses trabalhadores contribuem para o INSS. Sem a contribuição, os trabalhadores por aplicativo ficam desprotegidos de riscos, como acidentes. No resto da população, esse índice é de 33%.

O Congresso Nacional conta atualmente com 39 projetos de lei que pretendem interferir de alguma forma na relação entre as empresas de aplicativo e esses trabalhadores. Um deles propõe a “obrigatoriedade da disponibilização de capacetes para trabalhadores de aplicativos de entrega”. Outro pretende obrigar as empresas a criar e manter pontos de apoio com sanitários, estacionamento e sala com acesso à internet para quem lhes presta serviço.

De maneira voluntária, as empresas de aplicativo têm se movido para atender aos seus colaboradores, muitas vezes preenchendo alguns buracos que deveriam já ter sido preenchidos pelos entes públicos. O mais relevante deles é a necessidade de aprimorar o nível educacional desses jovens, para que eles possam executar tarefas mais complexas em um futuro mais digital. Por meio de uma divisão de “impacto social“, o iFood promete formar 25 mil entregadores até 2025. “Temos um compromisso de capacitar mais de 5 milhões de pessoas para os trabalhos do futuro”, diz Luana Ozemela, vice-presidente de Impacto Social do iFood, que tem o cuidado de chamar os colaboradores da empresa de “pessoa entregadora” — mais um sinal dos tempos. Há dois meses, a companhia organizou uma formatura para celebrar os diplomas de ensino médio de 950 entregadores.

As propostas mais drásticas para lidar com o problema são as que falam em incluir os entregadores e motoristas no regime da Consolidação das Leis do Trabalho, CLT, o que arruinaria o modelo de negócio dos aplicativos, impondo a eles todos os custos da legislação trabalhista. Caso os jovens trabalhadores de hoje percam a fonte de renda oferecida pelos aplicativos, muitos seriam empurrados para o desemprego – ninguém hoje, em sã consciência, acredita que um programa desenvolvido pelos Correios ou qualquer empresa estatal consiga oferecer uma alternativa decente caso iFood e Uber deixem o país, como ameaçou Marinho. Algo precisa ser feito, todos concordam, mas as soluções não podem ser pensadas com a cabeça dos anos 1980.

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500
  1. Boa reportagem. Gostaria de saber também como funciona essa relação dos aplicativos e pessoas entregadores em outros países. Os governos também querem regulamentar?

    1. Apenas posso falar com conhecimento de causa por Portugal, pois aqui vivo: nunca sequer entrou em discussão regulamentar a relação profissional plataforma/entregador por aqui.

  2. Existem motociclistas e motoqueiros. Existem motoqueiros estressados, violentos, agressivos e mal educados, são os maus elementos da categoria (acho que estes são ex-presidiários, como o Lula, mas este último para mim é um mau elemento de outra categoria...) e existem os bons elementos, mais cuidadosos e educados, muitos são pais d família e lutam, se arriscam diariamente p sustentar a família. Mas a maneira como todos andam circulando entre os veículos é muito perturbadora e perigosa, lei d FHC

  3. Texto muito esclarecedor e oportuno, especialmente para demonstrar o quanto PT e seus companheiros esquerdistas tentam governar o país de olhos fixos no retrovisor, na volta aos valores fora de moda…

  4. Petistas (e a maioria dos esquerdistas) são, na verdade, os reais conservadores. Conservam as mesmas ideias de meados do século XX.

  5. Lula nunca teve o mundo proletário na cabeça, nunca foi socialista nem comunista. O único “ista” que ele sempre foi e ainda é, é oportunista. Toda essa discurseira é balela pra cativar um público que ele espertamente soube muito bem detectar. E com isso chegar ao poder e fazer tudo o que fez.

  6. Matéria esclarecedora e oportuna. Não será esse o governo a assegurar dignidade a esses trabalhadores nem segurança de operação as empresas. Melhor que fique quieto para que os consumidores não percam o serviço nem os trabalhadores a renda.

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